54 - MÃOS



Nada se sente ao passar as mãos pelo topo de Paniecatacoyan. O corpo é transportado em silêncio, um silêncio tépido e apaziguador. Aqui as almas repousam. São purificadas ao longo da primeira parte da viagem. Seguem depois um rumo estranho e descontrolado. Avançam dissolvidas em energia por caminhos inóspitos direitas a uma lua de metal que as recebe com as pontas das suas lâminas afiadas. Depois de desmaterializadas, as restantes microscópicas partículas de existência diluem-se muito rapidamente num imenso turbilhão de fumo, de pó, de luz e de tempo, numa amálgama indescritível que origina um estranho acontecimento. No topo do céu de Paniecatacoyan começam a formar-se nuvens densas muito negras de formas e tamanhos diversificados. As cores negras de algumas dessas nuvens, principalmente as de maior dimensão, começam a ganhar tonalidades mais avermelhadas. Misturadas com a escuridão e com os fortes ventos que começam a fazer-se sentir, transformam o ambiente outrora calmo num ruidoso e rodopiante inferno. Um furacão encolerizado cresce assumindo as proporções da existência. Sorve todas as minúsculas moléculas que acabaram de ser trituradas pelas lâminas cruéis da lua de metal, engrandecendo ainda mais a sua inenarrável dimensão ao carregar com todas as memórias destroçadas dos que até aqui foram transportados. São muitas as almas que, apesar de tudo, conseguem atingir a quinta dimensão de Mictlan.

- É um sonho avó, é só mais um sonho! As mãos ainda te pertencem, tal e qual nós nos lembramos delas, agarradinhas debaixo do lençol a brincar ao faz de conta, a brincar às tendas do circo Aladino e aos animais ferozes de Ramiro Miro, o grande domador de leões e de iaques da Mongólia. Lembras-te como os fazia desaparecer por artes mágicas dentro do baú azul do ilusionista Sr. Segredo? Lembras-te avó, tens de te lembrar?! Foi só ontem! E os passos que dávamos ao princípio no jardim, em segredo, para que a mamã Valquíria não suspeitasse que eu já andava. Afinal foi contigo que aprendi. E tu sempre a fazer de conta que tinha sido ela a ver tudo isso como se tivesse sido com ela a primeira vez. E as mãos dadas nas ondas daquele mar de Maio, onde o silêncio da areia ainda era magia por debaixo dos meus pés. Aprender a deixar de sentir o medo daquelas ondas tamanho gigante, que para mim mais faziam lembrar a imensa escuridão do meu quarto quanto tu te ias embora e encostavas a porta devagarinho, para eu não acordar. E a tua mão amiga que me levou à escola pela primeira vez, no meio de tantas caras diferentes das que eu conhecia, no meio de tanto adulto estranho, de tantas vozes alteradas, roucas, velhas e cansadas. Só a tua mão me dava a entender que não valia a pena ter medo de sentir medo porque, ao fim e ao cabo, era tudo como um sonho, e tu ensinaste-me que, ao acordarmos, são eles que acabam por ter medo de tanta luz! Foram as tuas mãos que me ajudaram a escrever Maria com as massas do esparguete acabado de cozer, que me auxiliaram a dançar com os dedos da mão esquerda a valsa bonita do sobe e desce do meu nome com o lápis mágico da mamã! As mãos que sempre arranjaram tempo para dar o toque especial ao meu penteado e ao meu sorriso. As mãos que iam dadas ao cinema ver bonecos e histórias espantosas para eu crescer com elas. As mãos que abriram páginas e páginas de tantos livros no meio do quarto, na sala, no quintal, fazendo-nos voar devagarinho para que até o tempo sentisse pena em nos abandonar. São essas as mãos para as quais tens de conseguir continuar a olhar, acreditar que tudo, afinal, não é mais do que um sonho, apenas e só, mais um sonho…

Teresa acredita que aquela é a voz da sua neta Maria a fazer-se escutar algures no centro do imenso vórtice destruidor. Ao tentar relembrar o timbre exacto da voz da neta, recordou a mais recente dimensão desta viagem. Ao atirar-se em direcção ao vazio desde o voador tapete de relva, uma voz soara-lhe muito familiar. Instintivamente tentou agarrar a menina dona daquela melodia. A voz era perfeitamente audível e aproximara-se de Teresa. Não tinha agora a mais pequena dúvida. Aquela é mesmo a voz de Maria, mas é uma voz com um travo mais maduro e experiente, quase adulto. É uma voz segura e ponderada, uma voz que transporta uma imensa luz de esperança. E se Teresa necessita de ajuda! Não era a sua alma que devia estar a passar por todas as barbaridades, não era esta a alma que devia ser arrastada e atirada aos sete ventos de Paniecatacoyan, não era esta a alma que deveria permanecer parada até a hora certa, até voltar a ser de novo o que não era.

- As mãos avó! Não te distraias, por favor! É mesmo importante manteres toda a atenção no que elas te vão começar a oferecer. Coloca-as lado a lado, unidas pelos dedos mindinhos e viradas com as palmas para ti, como se segurasses um livro invisível em frente ao teu rosto.

Assim que Teresa conseguiu o tempo e a coragem para fornecer à memória a força da razão, seguiu à risca as instruções de Maria.

Arquitectou no escuro turbilhão aquela junção secreta das mãos e foi instantaneamente atirada bem para o centro da violenta tempestade

Desapareceu para sempre da quinta dimensão de Mictlan através do gigantesco olho luminoso da tempestade.

As infinitéssimas partículas de toda a sua existência pareciam enxames de abelhas a caminharem uns atrás de outros, atrás de outros.

Juntaram-se depois num só corpo, até que Teresa voltou a ser exactamente a mesma que dera entrada em Paniecatacoyan antes do início da loucura.

- Não posso fazer-me escutar por muito mais tempo avó, a tempestade vai serenar! Nunca te esqueças do poder incalculável das nossas mãos avó, nunca mais te esqueças, por favor, aconteça connosco o que acontecer!

O final deste voo atribulado pela quinta dimensão de Mictlan parecia estar a chegar ao fim.

De Serafim continua Teresa sem notícias. As vontades do marido pareciam estar nele já bem enraizadas desde que se deixou arrastar por Xolotl para aquela gruta resguardada algures na segunda dimensão de Mictlan.

Teresa tinha disso dado conta quando a corda do marido ficou esquecida nessa cova dissimulada.

Um esquecimento que continha tanto de falso quanto de conveniente.

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