40 - DESAFIO



- Ter em conta as diferenças. Sabes que tens de ter em conta a capacidade de ainda poderes sonhar. E se sonhar é a capacidade que temos de voar para outras paragens, então não se pode deixar de sonhar. A vida deixará de fazer todo o sentido!

Teresa observava a paisagem. Estava pintalgada de muitas tonalidades avermelhadas, o chão encharcado e completamente enlameado. A lama era uma pasta ocre que cobria todos os espaços e caminhos existentes entre as habitações e a entrada da selva, continuando até onde o rio se delicia a recebê-las nas suas frescas águas. As crianças que tinham ido atrás de Serafim voltaram para a aldeia e respondiam atarefadas a todas as exigências de limpeza e manutenção. Foram muitos os estragos causados pelo temporal. Chovera copiosamente dentro de muitas delas já na parte final do dilúvio. Grandes lençóis de água atravessam velozes e com destreza algumas habitações, roubando-lhes muitos dos objectos com refinado descaramento.

Teresa sente-se como um peão a girar descontrolado no meio desta agitação. Relembrar o seu total isolamento não lhe traz grande tranquilidade e as reservas de equilíbrio estão a ser malvadas para consigo. As suas mágicas mãos estão roxas com tanto cerrar de punhos. Não faz a mais pequena ideia do que pode fazer a partir de agora. É noviça nesta condição de desespero e de desconsolo e continua a preferir não dar ouvidos à cautela.

- Que aborrecido Maria! Estás para aí farta de comer e não me ligas nenhuma. É assim que me tratas depois de te ter protegido a saída por mais tempo do que devia? Tenho todo o direito de saber onde é que estão os avós.

Mariazinha escolheu com delicadeza a força do pontapé a descarregar na perna esquerda do Luís para lhe dar travão aos disparates. Aproximou-se delicadamente da bochecha como se lhe fosse dar um beijo amigo e sussurrou as seguintes palavras:

- Schiuu! Achas que é aqui, no meio da comida e com os pais atentos, que esta conversa vai acontecer? Eu sei que queres saber tudo o que tenho para te dizer, e se há coisas para contar, mas vais ter de esperar mais um bocadinho. E não voltes a dar gritinhos tolos como o que deste agora mesmo! O pontapé não foi assim com tanta força!

Nesta angustiante e nervosa paragem das suas vidas, alguns com a vida toda ainda para crescer, o casamento de Valquíria e Sebastião vai-se entretendo a fazer nós nas vidas de quem o vive.

Os convidados seguiam Maria com os olhos. A menina percebia que era o centro das conversas. Não tinha feito nada que considerasse merecedor de tanta atenção. Se eles sonhassem só com metade das peripécias passadas ao tentar resgatar os avós, as conversas sobre si iriam certamente acumular muito mais doses de espanto e deslumbramento.

Todos têm um papel a desempenhar no casamento, como actores perfeitos e bem ensaiados. Exige-se a condimentada pitada de nervosismo, as conversas circunstanciais e festivas, o sal de tantas lágrimas a temperar os cenários, e o árduo trabalho do compromisso e da dúvida ao encarar o futuro de frente.

O acordo deste passeio foi completamente ultrapassado pelo desenrolar destes estranhos acontecimentos, e o pai da noiva incapaz de abrir o baile honrando-a com a primeira dança. A festa tem de voltar a acontecer como estava programada. Isso mesmo não sai da cabeça de Mariazinha, como se de uma missão secreta se tratasse. Sente-se diferente, andou adormecida todos estes anos e agora, subitamente, acordou para o entendimento da realidade que a cerca como nunca julgou poder vir a acontecer.

- Estas cadeiras são bem confortáveis, não achas Luís? E a sopa de espargos de madame Berenice uma verdadeira delícia, tal e qual a mamã tinha dito.

O nervoso miudinho do primo nem lhe permitia apreciar como devia o saborosíssimo creme que desenhava aquele perfume bem na frente das suas sardas.

- Coma este caldo senhora! Vai ver como a fará sentir-se bem melhor!

Teresa virou o rosto na direcção daquela voz que se fez escutar atrás de si. Não viu ninguém! Jurou ter ouvido alguém chamá-la agorinha mesmo, nem há coisa de segundos. Os pensamentos dividiam-se entre a neta perdida, Serafim desaparecido no centro da densa floresta na noite de temporal, as discussões pacíficas com os seus receios e uma imensa sensação de abandono que agora lhe dava a sensação bizarra de escutar vozes onde não existe ninguém.

As mãos de Yathuguman seguram uma pequena malga com um líquido morno que aguarda pela fome de Teresa. E um susto percorreu o seu corpo quando deu conta do índio parado como uma estátua à sua frente. O rosto, o cabelo, os muitos adereços que lhe embelezam os membros, todos carregados de um vermelho intenso como se um balde de tinta espessa tivesse caído por cima de si.

Teresa nem costuma dar grande importância aos sonhos. Esta dimensão de realidade deseja que seja só um sonho mau que terminará quando deixar de ter vontade de a seguir como uma sombra.

O índio aguarda que Teresa se sirva do caldo que lhe apaziguará o estômago vazio. O irmão tem uma tarefa secreta a levar a cabo com Serafim.

Estava a ficar com saudades dos primeiros tempos quando tudo se cristalizava com muito mais naturalidade. Os loucos que lhes serviram tantas almas de crianças na busca das acalmias dos seus horizontes transformaram-lhe as cores da vontade. Tantos mundos que já viu nascer, crescer e desaparecer. Até ele se pode dignar a ficar cansado. Com aquela menina que transportou de volta ao seu recreio, nasceu uma outra realidade que não tinha conseguido ainda conquistar em si.

Este é um desafio que vai procurar decifrar enquanto o irmão resolve a outra fracção do problema nas profundidades sagradas de Mictlan.



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