44 - DESENHO


Os negros preenchem toda a paisagem. Desgastadas as densas muralhas da imaginação, as ideias são atiradas em desespero para o campo da escuridão. As almas enfraquecidas descem às profundezas de Mictlan como soldados, para se perderem nas amargas privações dos seus desafios. Xolotl tem muito mais trabalho nestes tempos de agora. Não pode manter os privilégios de uma só alma por muito mais tempo acima de todas as outras, deixá-la a pairar numa nuvem rosa sobre as águas iniciáticas do caminho. Se não existir comunicação do irmão nos instantes mais próximos, os procedimentos com a alma de Serafim terão o seu início.

Nem que os sonhos de todos os que já partiram se fundissem num só ser, seria impossível descobrir como funcionam os alicerces da existência. Apenas a alguns dos deuses se envia parte do conhecimento necessário. São-lhes distribuídas as mais diferentes fainas e carregam com as mais díspares tarefas para que nada lhes falte neste frágil tormento.

O sol queima-lhes os dedos e tem expressas ordens para lhes rebentar os corpos caso ousem alterar os comportamentos.

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- Já se pode ter alguma ideia para onde possam os avós ter desaparecido? Conseguiste saber para onde foram?

O Luís Miguel não sabe que a prima conhece muito mas deseja comunicar bem pouco. A viagem de volta montada no corpo esguio de Quetzalcoatl era um segredo só seu. Às suas queridas Nana e Marafona dará conhecimento e a mais ninguém.

O primo tinha de ficar a saber alguma coisa, caso contrário a cabecinha luminosa do menino será bem capaz de começar a estalar como pipocas.

- O papel que me deste só tinha gatafunhos rabiscados! A tua letra miudinha não se consegue ler. Só consegui perceber que a selva amazónica estava linda e perfumada e o grande rio dominava a paisagem até onde os olhos podiam ver. Não consegui compreender mais nada senão isto!

Mariazinha olhou para o primo com vontade de o engolir. Percebeu que não valia a pena adiar o inadiável. Tinha de conversar com ele, mesmo ali, na presença de todos e com o perigo dos adultos conseguirem apreender algum sentido da conversa.

- Pois é Luís! É mesmo muito bonita, toda verdinha e perfumada. E na selva amazónica o grande rio parece uma imensa cobra pintada aos esses na paisagem. Se formos de avião por cima de tanto verde, lá em baixo o rio gigante entretém-se a abraçar a selva e os seus bichinhos!

Maria pegou no pequeno papel que tinha dado ao primo com a intenção de o acalmar. Não tinha valido de muito. A língua e a vontade eram mais fortes do que ele!

Na parte de trás da folha ia fazendo uns pequenos desenhos acompanhados de frases para lhes dar significado. Umas árvores muito perfeitas eram por si desenhadas com a caneta esferográfica preta que tinha pedido emprestada à tia Joana. Por baixo delas escreveu o seguinte:

Crianças amigas na selva escondida”.

Continuou os seus desenhos. Na perfeição desenhou cerca de uma dezena de pequenas habitações, casas em forma de cones com aberturas semi-circulares que mais pareciam pequenas tendas. Ao centro desenhou um grande círculo e no centro do círculo desenhou uma figura parecida com um homem mas com uns estranhos calções e um penteado esplendoroso. Por baixo delas escreveu o seguinte:

Bonita aldeia com chefe simpático”.

O primo ia dando espreitadelas na obra de arte da Mariazinha, a cada desenho que ia sendo acrescentado na folha o menino mirava, expectante, o rosto da artista. Aguardava uma mais-valia em forma de palavras para tentar compreender aquela história aos quadradinhos.

Os desenhos ainda não tinham terminado. O último que Maria ia fabricando era o de duas figuras femininas, muito pequenas, uma maior do que a outra e de mãos dadas. Uma seta enorme foi depois desenhada na frente das duas e apontava para uma das entradas semi-circulares numa habitação. No meio dessa habitação a menina escreveu com letras maiúsculas e muito espessas a palavra AQUI.

- Aí Maria, mas aí o quê? Estás a tentar dizer que tu e a avó são as duas senhoras que aí estão desenhadas? E foram as duas para dentro de uma tenda numa aldeia na selva? Mas que enorme confusão!

Os olhos de Maria cresceram na exacta medida da sua irritação. Não tinha vontade em dizer muito mais do que já tinha ali desenhado. O primo estava tão excitado que não conseguia raciocinar convenientemente. Tanto fazia desenhar com todos os pormenores e decorar a informação visual com palavras de aconchego, ou dar-lhes pouca qualidade gráfica que o primo Luís parecia incapacitado de lhes poder dar correcto entendimento.

- Esta é a única maneira de jogar este jogo meu querido primo! Se não consegues descobrir onde ficam estas casas perdes cem pontos e eu ganho mil!

Valquíria manteve-se atenta aos rabiscos artísticos com os quais a filha ia entretendo o Luís. O estranho é que, até hoje, os dois primos pouco ou nada se tinham entretido com jogos desta natureza, e ali estavam eles, como nunca os tinha visto anteriormente, bulhando por causa de uns simples desenhos numa pequena folha de papel pautado.

- Parece uma bonita selva, cheia de muitas árvores verdejantes e com uma simpática aldeia de típicas tendas índias! Será na amazónia Maria? Terei eu adivinhado o nome do local?

Os dois meninos viraram-se para a noiva, brancos e mudos como dois pequenos fantasmas.

A pergunta tinha dado a Valquíria os cem pontos da vitória!

- Esse jogo parece bem engraçado meninos! Quem vos deu essa ideia tão curiosa para se divertirem?

Maria é demasiado astuta para se vergar tão facilmente às perguntas da senhora sua mãe. Inventar uma pequena desculpa não é fugir com a verdade aos ombros, apenas procura desta forma impedir o mais que provável interrogatório da praxe.

- O Luís tem a mania que sabe mais de geografia do que eu mamã! Este jogo é uma espécie de pictionary. Cada um desenha à vez um local no planeta e vai dando pistas para que o outro possa descobrir em que região do mundo fica situada. E a mamã acabou de roubar ao Luís Miguel os cem pontos da vitória!

O primo ainda estava da cor do vestido da noiva. Enquanto Maria descobria nela estas palavras, as cores rosadas do Luís voltavam a acender-se vagarosamente na sua cara sardenta.

- Tia Valquíria! Eu já sabia que era uma selva gigante. E maior do que a amazónia, não há na nossa Terra, pois não Maria? Era isso mesmo que eu ia dizer!

A noiva mantinha um ar propositadamente distraído, como se a resposta da filha e o pormenor inteligente do adorno linguístico dado pelo pequeno Luís lhe tivessem serenado as dúvidas existentes.

- Muito bem meus lindos meninos, muito bem! Porém, neste desenho existe uma coisa que muito me intriga! Qual terá sido o motivo que levou Maria a desenhar duas senhoras tão bem vestidas no centro de uma aldeia índia da selva amazónica? E qual a importância do que se passa dentro desta cabana, desta AQUI, para onde esta seta carregada indica o caminho.

*

- Aqui, nesta cabana onde haveis descansado, é chegada a hora de vos transmitir a difícil tarefa que vos aguarda, senhora! Esta quinta construção está em perigo. São já profundos os problemas causados por todos vós na moradia que partilham. Se é certo que o senhor seu esposo encontrou resposta para a dúvida que carregava, a importante missão que o aguarda na construção do futuro da vossa neta Maria não nos permite dar-lhe o destino desejado. Como tal é a si, Teresa, que recai esta função de lhe alterar os intentos. É só a sua voz que ele ainda consegue escutar. Através dela e com a força dos seus argumentos, terá de provocar em Serafim uma inabalável vontade de mudança! Se não lhe conseguir alterar os propósitos, melhor será avançarem os dois rumo às provações extremas das profundezas de Mictlan, e mais uma desmoralizadora hecatombe, a quinta, acabará também por ocorrer como, aliás, todas as outras que a antecederam em construção. A vida e o futuro mais próximo da vossa neta são demasiado importantes para o restabelecimento de alguma ordem nesta moradia por todos vós partilhada.

Yatughuman respirava com maior dificuldade. As formas humanas com que veste as suas aparições, não lhe são de todo as mais ordeiras. Apontou de imediato para o grande rio vermelho que teimosamente manteve aquela tonalidade desde que Serafim mergulhou nas suas espessas águas. Teresa percebeu que nele repousava a direcção a tomar. O rio encarregar-se-á de a transportar até onde Serafim se encontra suspenso. Das suas palavras e só delas, dependerá o resultado final deste percurso. Serafim, a neta Maria e o futuro da quinta construção da humanidade aguardam pela sua capacidade de persuasão às portas da entrada de Mictlan.

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