47 - VEREDAS


Montanhas agrestes e escarpadas são invocadas por Xolotl para o segundo desafio. Veredas atiçadas umas contra as outras com tamanha violência que universos inteiros são esquartejados instantaneamente. Os viajantes tentam encontrar passagem pelos poucos espaços que surgem sem o conseguirem. Acabam derrotados pelas forças estrondosas surgidas da imensidão daquele oceano rosado.

Às almas não é dado aviso do início da cartada. Os que tentam passar por esta etapa choram lágrimas de sangue ao pedirem auxílio à luz do sol. Cegos pela passagem repentina da total escuridão para aquele brilhante cenário, as águas trucidam os restos dos corpos destes caminhantes como se estivessem carregadas de ácido, são poucos os que se aventuram corajosamente por este caminho, apesar de residir no fundo das suas entranhas a saída do segundo obstáculo.

Subitamente acordados do torpor a que estiveram submetidos por um Xolotl embrutecido, são confrontados com aquele cenário selvagem no imediato instante em que voltam a sentir. O tempo de reacção é curto, tão curto que são instantaneamente destruídos pela dimensão daquele desastre. São poucos os que se conseguem esgueirar nesta etapa inicial. Os que o fazem chegam feridos e completamente exaustos ao lado de lá daquela trilha com a vontade de continuar muitíssimo debilitada.

Teresa entende o sádico prazer sentido por Xolotl ao abrir as portas de Mictlan a tantos romeiros. Depois de escancaradas de par em par, foram estranhamente doces as sensações partilhadas com esta personagem maldita. O caminho que Yatughuman tinha aberto em Teresa, esta capacidade adquirida de entender as almas na sua linguagem universal sem a necessidade de palavras, trouxe-lhe também o reverso da medalha. Esse perverso prazer soou-lhe bem, continha uma adocicada dose de veneno que lhe tranquilizou muitos receios como um bálsamo maldito.

Ainda tacteava por Serafim na súbita claridade com que a paisagem foi brindada. Enquanto Xolotl se diverte com as primeiras formas derrotadas, engolindo-as num frémito alucinado, a avó segue o instinto inicial que lhe dera conta do possível esconderijo do marido. O gémeo de Quetzalcoatl mantinha em total segredo a localização recôndita do marido num inóspito rochedo escarpado de uma das ilhas mais a nordeste da imensa foz do rio vermelho. Teresa entendeu como alcançá-la num pensamento de Xolotl, um que em dado momento experimentou bem perto do local onde nadava. Descobrira que o guardião tinha passado propositadamente junto de si para lhe transmitir a informação. Queria que fossem os dois, não apenas Serafim, a caminhar pelas inóspitas profundezas de Mictlan.

O sopro quente que se agita forte no centro do ilhéu onde Teresa caminha carrega um perfume familiar. Tudo parece trabalhar a seu favor. O companheiro não pode estar muito longe. A última dificuldade a vencer será fazer-se transportar até ao fundo daquela falésia onde uma gruta esconde a alma do seu esposo. As águas estão revoltadas pela grandiosa aparição das montanhas escarpadas imploradas por Xolotl. Batem violentamente na base da falésia, inundando grande parte da entrada da gruta onde Serafim vai acordando.

Ao longe mas suficientemente perto, as escarpas vão chocando e o céu fica negro com tamanha dedicação dada por Xolotl aos saborosos prazeres da morte. Os ruídos não se podem descrever. Misturam-se os rugidos das almas dilaceradas pela dor e pela angústia com a rebentação das ondas junto ao rochedo. Os estrondos assombrosos das montanhas que vão colidindo vezes e vezes sem conta, possantes e incansáveis, misturam-se também com as vozes escutadas por Teresa dentro da sua cabeça, suplicantes por mais um pingo de coragem.

Do alto do rochedo, debruçada sobre o mar agitado, Teresa consegue arrancar de seu peito um forte grito chamando por Serafim. Sabia que ele já acordara do torpor imposto por Xolotl, um torpor bem mais prolongado do que se servia a todos os viajantes destas paragens. Essa missão Xolotl tinha cumprido zelosamente tal como o irmão lhe encomendara.

- SERAFIM! SERAFIM! SERAFIM!

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A conversa nem começou e já se montam as questões na cabeça de Serafim, todas as histórias que deseja relembrar. O aconchego da voz de Teresa descia lá do alto e entrava pelo abrigo escuro com toda a nitidez. Não estava à espera de um mar tão revolto e o absurdo ruído da rebentação apanhou-o desprevenido.

Qual o verdadeiro poder de Xolotl que prende com tanta facilidade o destino traçado das almas? Atrasa os seus percursos, escreve-lhes e altera-lhes os lugares, não lhes proporciona as cem ajudas, antes avança com mil desventuras brutais acrescentadas às de Mictecacihuatl, rainha de Mictlan, que aproveita este regresso dos que viveram para reaver os seus ossos. Irá mantê-los bem guardados até as próximas extorsões por parte de Quetzalcoatl. Mantém-se desta forma de pé a casa construída pelos deuses, para que o lar maior possa ser abandonado e aqui se venham saldar as dívidas devidas.

Esta foi a assinatura secreta, o pacto oculto celebrado entre a grande anaconda e a rainha dos mortos. Quetzacoatl e o seu gémeo Xolotl conseguiram escapar com sucesso com o peso das ossadas e deram cumprimento à quinta construção da humanidade. Mictecacihuatl entreteve o rei dos mortos, atrasando a sua reacção. Esta ajuda permitiu que os dois irmãos escapassem mais facilmente com o saque exigido. Na atrapalhação da fuga, as ossadas espalharam-se violentamente pelo chão. Muitos foram os ossos que estalaram, quebrando-se em vários tamanhos, razão pela qual os humanos foram criados com alturas desiguais.

Também as suas almas foram construídas com diferentes medidas, mas tal situação não se deve ao acidente mencionado.

- SERAFIM, SERAFIM! Consegues escutar-me aí em baixo? A voz já me custa arrancar da garganta. A prioridade desta descoberta é fazer com que possamos juntos embrenharmo-nos nas profundezas deste destino. Ou eu desço até á gruta ou tu sobes até ao topo desta falésia.

Teresa esquecera-se por instantes da disponibilidade do seu novo atributo. A voz doera tanto, e com prazer, ao arrancá-la dolorosamente dentro de si. Foi montada nos seus gritos até junto do marido, lá bem ao fundo onde a gruta era varrida pelas vagas gigantescas que lhe cobrem a entrada. Fechou os olhos com a dor e conseguiu ver Serafim.

O perigo surge de todos os lados. Teresa sofre imenso de vertigens, sempre foi assim. Das suas poucas fraquezas, esta foi a mais bem escondida de todos os que a conhecem. Bem pior do que se ter atirado no vazio lá no alto da escuridão, é esta perfeita visibilidade que se apresenta tão clara à sua vista. A profunda e tenebrosa distância que separa o seu corpo do fundo inóspito daquele rochedo, que vai bailando desgovernado no centro da cabeça, falseia-lhe a coragem e impede-lhe a tentativa da descida. É uma nefasta doença que Teresa nunca curou!

- SERAFIM! Escuta bem o que te tenho para dizer! Tens de sair desse lugar quanto antes! Não podes ficar aí parado pois o mar vai invadir essa morada escura num instante! Se não começares a subir imediatamente, destruir-te-á todas as lembranças. Os teus sonhos serão apagados e esquecidos para sempre no meio destas marés atormentadas! Se eu pudesse fazer-me transportar até ti, acredita, já estaria aí ao teu lado, mas um furacão nefasto desfez-me a coragem necessária para descer. Tens de ser tu a organizar a subida pelos teus próprios meios.

Ainda mal refeito e de alma cansada, esgotado com as privações a que fora sujeito recentemente, ouviu a voz da mulher ao longe vinda do céu, instruindo-o lá do alto daquele morro húmido e sombrio. Sentiu uma satisfação tremenda. Deixara passar os prazos da razão, depois de tudo o que Teresa fizera por ele, pela família, pela tribo que ambos criaram. Deve-lhe a tentativa daquele trajecto, subir até ao cimo com todas as forças que conseguir arranjar dentro de si. As vagas já lhe vão dando dentadas salgadas nos joelhos e nas coxas. A tarefa torna-se cada vez mais arriscada se continuar a dar alimento às vozes da hesitação.

O sangue escorrega pelas escarpas e ataca toda a parte central da falésia até ao topo da entrada da gruta.

Uma sensação estranha, como se fosse um pequeno rapazola endiabrado, serviu-lhe a proposta para o primeiro conjunto hábil de movimentos a efectuar com o seu velho corpo para sair dali para fora. Eram memórias já quase extintas mas ainda presentes, tão presentes como a memória daquele longínquo momento em que as resolvera coleccionar. Mal podia imaginar, naquela altura, que bela ideia tinha sido essa. Manter resgatadas, numa grande colecção, tantas práticas acrobáticas do tempo em que se divertia a trepar e a saltar por tudo o que lhe parecia ser merecedor de aventuras. E ali estão os braços, as pernas, as pequenas porções da ponta dos seus dedos, os seus rins, as palmas das suas mãos, todos a lerem nas suas memórias o testamento que lhes dá a força suficiente para carregar Serafim até ao alto daquele rochedo sombrio.

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