49 - PUNHAIS


Maria estava entretida a rabiscar mais histórias nas folhas pautadas. Eram figuras estranhas com roupas bizarras, misturas de índios com muitas cabeças de animais fantásticos, cobras entrelaçadas e outras imagens que dão ao conjunto um aspecto bastante invulgar. Esses índios trazem agarrados nas suas mãos em formas de garras, ceptros que apontam para cabeças de animais escondidas dentro de pequenas circunferências. São quatro e estão desenhados nos cantos da folha. Por detrás deles desenhou árvores de grossos troncos cujas copas estão enfeitadas com flores e estranhos frutos.

- O que é isso que estás a fazer Maria? Isso não está nada parecido com o desenho que fizeste agora mesmo. Não há aí cabanas, nem meninas de mãos dadas com ninguém, nem praças, e esses índios parecem ser bastante assustadores! E que cobras tão feias são essas com bocas abertas que parecem estar a engolir pessoas? Estás a desenhar coisas muito medonhas prima Maria, coisas medonhas que me estão a assustar!

A menina não estava a ouvir nada nem ninguém. Crescia nela uma incontrolável vontade de desenhar estas estranhas figuras, estas histórias que a avó lhe ia trazendo lá de muito longe em forma de imagens retorcidas, não de palavras.

No centro do conjunto desenhou um gigantesco círculo onde duas cobras entrançadas estão encarceradas, de bocas abertas, cada uma engolindo para dentro de si as suas humanas formas.

Os avós foram colocados por Xolotl numa antecâmara gigantesca em forma de planeta vermelho. Muitas estrelas em miniatura se perfilaram ao redor deste astro encarnado, transformando a anterior escuridão que abraçou a passagem de Teresa e Serafim para este novo patamar da caminhada, num mais brilhante cenário.

As verdades terão de vir ao de cima.

Terra, fogo, água e ar perfilam-se ao redor deste planeta e serpenteiam aos quatro ventos as formas definitivas do astro. O brilho que dele emana é tão intenso que cega momentaneamente os seus novos habitantes, ainda estremunhados com a rapidez com que a escuridão se ausentou.

Junto à porta de entrada de Mictlan, Xolotl coloca cópias exactas de Teresa e Serafim, transformados em serpentes entrelaçadas, tal e qual o irmão os transformara, para que sintam o poder dos deuses a passear nas suas veias.

Este momento é excessivamente doloroso.

As primeiras vontades dos deuses são incompreensíveis. O corpo, no início da transformação, deseja experimentar todas as formas possíveis, todos os poderes, todas as perversas loucuras que aos deuses se servem em doses infinitas. Um pobre mortal não consegue suportar a ansiedade provocada por estes primeiros momentos de alienação e a irrequietude faz com que os seus humanos corpos, tão recentemente abandonados, sejam imediatamente devorados.

Teresa e Serafim iniciam o terceiro desafio de Mictlan sem entenderem a dimensão exacta da tarefa que os aguarda.

Serafim devia estar a passar sozinho por este tormento. Confirmou a vontade de se deixar abandonar pelas estradas de Mictlan, que o receberam como a todas as almas em trânsito divino, com as devidas agruras.

O que surpreendeu Quetzalcoatl foi ter tido conhecido a extraordinária Maria.

Uma areia de indecisão tinha ficado esquecida na alma de Serafim, apesar da sua aparente irredutibilidade. Ao mergulhar nas águas do rio vermelho com tantas certezas, obrigou Quetzalcoatl a alterar as estratégias para com a sua alma. Ao desaparecer rumo ao seu destino, um valor muito maior ficou em risco, um valor bem mais importante do que Serafim alguma vez poderia imaginar.

Os novos corpos estalam de dor com imenso ruído. As conversas que vão manter neste lugar criado pelos deuses serão como lâminas bem afiadas atiradas directamente aos seus corações. Os novos corpos de réptil são assolados pelas verdades que esconderam um do outro ao longo de tantos anos de vida em comum.

Xolotl retirará as duas cópias da porta de entrada de Mictlan quando não mais se destruírem um ao outro com as verdades que forem perfilando, umas atrás das outras, vezes sem conta.

As palavras continuam a sair como armas na direcção um do outro, mais afiadas que punhais de quartzo, atiradas sem descanso até que os diálogo feitos de dor terminem num acordo final entre Teresa e Serafim.

- A avó vai ter de convencer o avô a voltar para casa mamã! Os dois estão a ser sujeitos a tanta dor, a tanto sofrimento, e tudo por coisas já passadas. Estão zangados por histórias que não podem ser corrigidas, por derrotas que ambos foram sofrendo e infligindo um ao outro, como se com elas morressem mais um bocadinho. Empurraram todos esses erros para as zonas mais escondidas das suas almas e agora os deuses colocaram-nos frente a frente com essas realidades escondidas. Estão a sofrer imenso mamã, está a ser muito doloroso para os dois!

Valquíria não entendia esta transformação no vocabulário de Mariazinha. Tão estranho como o seu desaparecimento, o seu regresso carregou na filha esta misteriosa capacidade de transfiguração. Não restava a mais pequena dúvida. O dia do seu casamento tinha sido escolhido para nele marcarem a ferro quente estranhas e dolorosas mensagens. As suas vidas, seguramente, não mais serão as mesmas.

Os impressionantes dotes artísticos de Maria continuam a amontoar nas folhas daquele pequeno bloco desenhos cada vez mais complexos e misteriosos.

- A prima está a desenhar coisas muito malucas tia! Onde é que terá ela descoberto estes bicharocos tão esquisitos? E estas cobras estão um bocado assustadoras. Eu não gosto nada delas Maria, não gosto nem um bocadinho!

Mariazinha deu por terminado aquele desafio. A avó tinha parado de lhe transmitir novidades em forma de imagens. Precisava de toda a concentração para reaver a esperança de Serafim, para tentar, finalmente, demovê-lo da sua vontade.

Os olhos da Maria conseguiram levar até à avó a imagem bonita de Valquíria, com os olhos rasos de água, remetida a esta desorientação total que o dia de casamento lhe vai servindo de presente.

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