48 - PRETO

imagem da página 29 do Codex Borgia


Muitos são os corpos que vão alimentando aquelas ondas. À grande maioria deles faltam membros, cabeças, e os que aparecem trôpegos mas com forças para se manterem à tona de água, encontram-se cegos sem olhos nas suas órbitas.

O poder da criação é o mesmo poder da destruição. São muitas as personagens demoníacas que se encarregam de engolir os seus restos para manterem purificadas as salgadas águas rosadas de Mictlan.

Estranhas figuras marinhas com formas esguias e de grandes bocas saem daquelas águas tempestuosas. Engolem inteiros alguns dos que tinham conseguido vencer o embate das montanhas. As suas bocas possuem dentes de tamanhos tão cruéis como cruel é a capacidade que possuem em dilacerar os corpos que lhes são entregues pela maré.

No centro da destruição uma nuvem de estranhas formas cresce até atingir proporções indescritíveis. A pouca luminosidade existente desapareceu da paisagem vestindo-a com negros tão densos e impenetráveis que os corações de Teresa e Serafim pararam por instantes de bater.

O último terço da subida está na iminência de ser vencido. As mãos da avó quase a alcançarem as de Serafim quando a escuridão os escondeu, confundindo-os na fase final do salvamento.

- SERAFIM! SERAFIM! Não te deixes escorregar! Segura-te com todas as forças! Mantém o corpo quieto até que alguma luminosidade possa voltar a dar-nos auxílio.

O mar ficou da cor das trevas.

A nuvem negra vomita imensos braços gelados rodopiantes, listrados de cores escuras, como gigantescos corpos de serpentes que depois se transformam em milhares de estranhas criaturas marinhas que descem dela até se fundirem com as ondas do mar. São deuses de ventos e furacões, deuses de todas as cores que descem pelas montanhas em fúria e que se esgueiram até ao fundo daquele mar.

As ossadas pretas de um corpo em completo êxtase dançam no cimo da nuvem escura. O indescritível poder de Quetzalcoatl está a ser utilizado para temperar a parte final do segundo tormento. É ele que vai invocando aquela imensa destruição. Em Mictlan, as vozes loucas e penitentes de Quetzalcoatl desfiguram-lhe as vontades. As desrespeitosas manifestações dos que foram por ele criados fazem-no agir com este descontrolado prazer. Uma raiva infinita cresce nele com revigorado contentamento.

Os ruídos, o turbilhão de gritos, as vozes incompreensíveis que guerreiam com esgares de dor e de martírio são o mais difícil de suportar. Teresa e Serafim gostariam de dar uso às mãos para tapar os ouvidos por breves instantes.

No rochedo onde se agarrou como as raízes do medo, Serafim sente o sangue que pinta a falésia a descer pelo seu corpo e a penetrar-lhe pela garganta como se fosse um ser vivo. Não tinha ganho forças suficientes para responder a Teresa mas a vontade já lhe tinha chegado. No momento exacto em que as palavras lhe iam sair da boca, viu-se invadido pelo mesmo líquido que lhe tinha enchido os pulmões ao descer o rio vermelho.

Teresa entendeu a súbita aflição de Serafim. Esticou-se o mais possível na tentativa de alcançar o marido, mantendo bem alto o tom da sua voz!

- SERAFIM! SERAFIM! Tenta alcançar a minha mão agora! Vou bater com ela aqui contra o penhasco! Ouves! Escuta o local onde bato com ela na parede! Segue o barulho que eu faço! Não desistas agora que estás tão perto do topo, não desistas agora Serafim, agora não é o momento para isso!

A nuvem assume a forma de um inimaginável cérebro negro, a imagem gigantesca da parte mais sombria do cérebro de Yatughuman, deliciado com a dimensão desta catástrofe, alucinado mas tranquilo por saber que no centro da escuridão duas personagens acreditam que a saída deste tormento pode ainda acontecer.

Teresa e Serafim mantém a esperança na vitória, mantém ainda uma chama que os vai alimentando.

Não sabem que solução terá este mistério.

Procuram somente o encontro.

Descobrirem-se para juntos avançarem rumo aos restantes sacrifícios que os aguardam.

Os segredos que esconderam um do outro são agora autênticos punhais a varrerem-lhes as lembranças. Tudo nestas paragens se ficará a saber, nada ficará escondido . Se ultrapassarem as etapas em falta, se conseguirem imaginar a restante viagem pelas agruras de Mictlan e o fizerem com sucesso, as heranças fatais dessas memórias serão colocadas, sem rodeios, à sua frente numa mesa.

A escuridão é tórrida e sufocante. Serafim sente a garganta a arder como se um fogo intenso tivesse começado a consumir-lhe as cordas vocais. O som das palmadas fortes da mão de Teresa na parede do rochedo escuta-se perfeitamente acima da sua cabeça. Uma violenta dor ataca-lhe os pulmões e toma conta de si. Apesar de todo o sofrimento, apesar do líquido espesso que começa a entrar-lhe pela boca, da sensação de ardor que lhe ataca as cordas vocais, Serafim descobre uma força insuspeitável e grita finalmente uma resposta para a mulher que o tenta tirar daquela alarmante condição.

- TERESA! Estou aqui a pouco mais de um metro do som da tua mão. Não pares de bater. Vou fazer uma última tentativa para te alcançar.

Os deuses enfurecidos continuavam o seu desmedido massacre. Aquele pedaço de rochedo construído no ilhéu onde Xolotl escondera Serafim, estava algo afastado do centro do frenesi. Se assim não fosse, já teria sido engolido ou despedaçado como muitos outros viajantes perdidos de Mictlan.

Teresa resiste ali tão perto, de mão estendida para o puxar na direcção da salvação.

Num súbito ataque de coragem, de olhos fechados apesar da escuridão, Serafim arriscou um salto para tentar alcançar a mão de Teresa. Assim que ela sentiu o toque aflito da mão de Serafim na sua, não mais o largou.

As pernas a fraquejar, o corpo a doer, o peso de Serafim a arrastar Teresa sem piedade na sua direcção. As mãos sempre a apertar com segurança a mão do marido. No exacto momento em que antecipava a queda desamparada rumo ao fundo da falésia escarpada, percebeu os braços a ganhar alívio e as forças a regressar ao seu corpo cansado. Serafim conseguiu encontrar um pedaço de rocha firme que lhe serviu de base ao pé direito. Em esforço e com a ajuda preciosa de Teresa, deu o impulso final em direcção à tão aguardada segurança do topo da falésia.

Os dois não tiveram tempo para ensaiar um festejo, para esculpir um gesto de alegria. Os deuses, agora com Xolotl a mudar o cenário, abrem o pano para mais uma etapa, para mais uma curva da estrada.

Aos que por ali ainda se arrastam não lhes é dado tempo sequer para pensar. A terceira etapa aguarda-os já com o respectivo desafio no fundo da escuridão de Mictlan.

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