52 - TEMPO


Um imenso nada surgiu na expedição.

Conseguir vencer as sofisticadas intenções deste lugar não está ao alcance de muitos. O silêncio gelado e um cerrado nevoeiro cobriram a neve das paisagens sem dar aviso.

Melhor seria sentir dor do que este vazio insuportável.

Uma experiência assim transforma totalmente uma alma. Impõe-se um merecido repouso neste intervalo da viagem.

Teresa estava desfeita, não havia palavras que pudessem descrever o que sentia. Cresceram-lhe asas nas costas que a arrancaram daquela infame situação. O tempo está contra ela e ainda há tantas coisas para fazer.

- Nunca acaba, pois não? Todo este espaço, esta sensação de infinito. A vontade que nos dá de não mais sair daqui. Esta rara sensação de pertença. O passado, o presente e o futuro deste instante são idênticos, são silenciosos companheiros de jornada.

A avó seria incapaz de se levantar sem a ajuda de Maria. Passados todos estes anos, a menina cresceu através da sua maravilhosa vontade de aprender, de seguir os exemplos de carácter e de força que a avó lhe ensinou. Aqui, onde a espuma do tempo lhe alisou todas as diferenças e imperfeições, foi-lhe relativamente fácil dar auxílio à avó. Surgiu como uma menina gigante vinda do céu gelado, em tons levemente azulados. Coração-de-sonho tinha agora rosto de senhora, não mais de menina. Os seus braços são suficientemente fortes para retirarem a neve que esconde Teresa.

Braçada após braçada, a neve sai manchada com o sangue derramado por tantas feridas abertas. O gelo foi cruel na forma como marcou o corpo da avó, mas a dor que sente é outra.

Apesar de tudo o que tem feito para tentar resgatar a alma do marido destes tormentos, apesar de suportar o peso de todas as agruras às costas, apesar de estar sempre disponível para dar sem esperar igual resposta, apesar de se manter a mais prestimosa das amigas e amantes, apesar de se entregar de alma e coração ao comando da sua tribo, apesar de todo o amor que coloca na condução das suas vidas, apesar de toda esta entrega, Serafim abandonou-a, mais uma vez, da maneira mais fria e cruel à mercê da sua sorte e sem ter demonstrado a mais pequena hesitação.

O tempo foi nivelado pelos deuses para que Maria pudesse fornecer o auxílio merecido a sua avó.

Quetzalcoatl tinha o corpo destruído mas a razão no devido lugar. Toda a informação destes perigos estava a ser comunicada a Maria pela serpente alada desde que os avós se embrenharam nas perigosas dimensões de Mictlan, desde que Xolotl resolvera dar ouvidos ao irmão e atrasou a viagem de Serafim o tempo necessário para que Teresa o acompanhasse.

Aqui em Paniecatacoyan, a quinta dimensão de Mictlan, as almas dos penitentes são transportadas em silêncio numa leveza indescritível.

Teresa fez por merecer a profunda tranquilidade desta dimensão.

Não seria possível derramar mais lágrimas salgadas se Maria não tivesse vindo em seu auxílio, se a grande anaconda alada não tivesse usado a linguagem dos deuses para lhe comunicar todas as privações por que passara a sua avó. E não poderia ter proporcionado esse milagre se não estivessem já tão adiantados na jornada.

É aqui que o tempo se alisa com as plainas dos deuses.

Serafim mantém-se escondido, como um cachorro obediente, nas geladas passagens de Izteecayan. Sente-se seguro e muito feliz, apesar da cegueira profunda que o veio visitar. Toda a vida pensou numa sagrada viagem às terras mágicas da grande dama branca, e ali estava ela mascarada de Sagarmatha, emblemática e falsa, como falsas são as sensações de bem-estar que ainda vai sentindo.

Xolotl viu o corpo do irmão esventrado pela sua acção precipitada. A muralha de gelo transformou-se em milhões de lâminas aguçadas com a intenção de descarnar o corpo de Serafim, de lhe despedaçar e rasgar a pele, os músculos, todas as veias e artérias, até que apenas os ossos pudessem permanecer como lembrança de quem fora.

Quando o irmão avançou para dar protecção ao corpo do viajante, a surpresa veio detrás de si com tamanha violência que ali mesmo o corpo de Quetzalcoatl entendeu a qualidade da dor física sentida pelos humanos.

Foi cortado em quatro partes pelas afiadas e fortíssimas lâminas de gelo.

Teresa voa leve e ligeira, tão leve como lhe sumiu o peso de tanta dor.

A sua alma não pertence a esta dimensão, está aqui comandada por uma razão que começou por ser a sua mas que acabou transformada por uma outra bem misteriosa e de difícil entendimento.

Maria já regressou da sua importantíssima função. Durante os minutos passados a salvar a avó da ameaçadora e gelada estepe de Izteecayan, a sua vida ganhou os anos necessários em força e em coragem para lhe proporcionar o auxílio devido.

Na boda ninguém deu conta da situação. Quetzalcoatl transportou a menina através dos poderes usados na primeira tentativa de criação da humanidade. As misteriosas e poderosas forças usadas nesse primeiro momento estão presentes em Maria e na cobra alada como em mais nenhum outro ser. O poder de pegar no tempo como se fosse barro, transformar essa pasta como um poema, dar-lhe forma e consistência, tornar a linha desse instante maior ou mais pequena conforme as necessidades do que se deseja criar.

É um misterioso e secreto poder este de controlar todo o tempo que existe, existiu ou que está ainda por acontecer. Tudo o que se passou com a neta e a avó em Mictlan aconteceu durante uma fracção impossível de segundo no tempo caótico daquele casamento. Os túneis deste segredo são abertos ou fechados por Quetzalcoatl sempre que algo o perturbe severamente.

As raízes destas equações começavam a ameaçar a sua capacidade de interpretação. Falhou na leitura que fez da situação. O poderoso Mictecacihuatl, rei dos mortos, afinal era um adversário bem mais poderoso e perigoso do que tinha imaginado. Não havia a mais pequena dúvida. A vontade em dar protecção a Serafim revelou-se perigosa e alterou os seus primeiros intentos. Era agora bem mais importante salvaguardar Teresa do que ainda resta da viagem. Mariazinha mostrou que as forças que habitam nela são das mais extraordinárias que jamais aconteceram ao corpo de um ser humano.

Serafim permanecerá cego na sua vontade adormecida por mais algum tempo. As brancas paragens da quarta dimensão de Mictlan mostraram-se interessadas em dar-lhe asilo por tempo indeterminado.

Os estranhos desenhos de Maria começaram novamente a aparecer nas folhas pautadas do seu pequeno bloco.

Mantinham a mesma espantosa qualidade artística dos anteriores.

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