53 - CERIMÓNIA


- Achas que estou a sonhar com todas estas mudanças Sebastião? Não pode ser de outra maneira. Já reparaste bem nos desenhos da nossa filha? Mal terminou de comer o creme de espargos, não mais parou de desenhar estas coisas esquisitas. O que é que tu achas disto Sebastião?

O noivo não achou grande estranheza nos desenhos da filha. Verificou, isso sim, um anormal nervosismo em Valquíria sempre que ela olhava para as pequenas figuras que Mariazinha ia colocando com grande mestria no papel.

- Não estarás a dar demasiada importância aos esboços da menina? Deixa lá que ao menos está distraída. Tem sido uma manhã muito atribulada, não é necessário dar excessiva atenção a coisas tão simples. A tua irmã disse agora mesmo que o inspector Jacinto acabou de chegar. Trouxe as bonecas da Maria. Quem sabe, assim que ela as receba de volta, deixe de rabiscar essas fantasias.

Quem colocou de lado os primeiros instantes de receio e começou a admirar todos os pormenores dos personagens que iam aparecendo no papel, foi o primo Luís. Mantinha uma atenção enorme ao que Mariazinha ia fazendo. Já percebeu que as figuras que ali aparecem têm uma relação qualquer com o que está a acontecer aos avós. Algures num local que a prima já conheceu, estas coisas podem estar mesmo a suceder. E já que a prima resolveu utilizar esta maneira curiosa de lhe serenar tantas dúvidas, não resta outra solução. Tem de se manter muito atento ao que vai acontecendo nos desenhos de Mariazinha.

- ( baixinho ) Ouviste bem Maria? A minha mãe foi buscar a Nana e a Marafona ao senhor polícia. Será que elas trazem coisas para nos contar acerca dos avós, coisas que nenhum de nós ainda descobriu?

Maria olhou para o primo com vontade de lhe dar uma pequena missão, uma tarefa que o pudesse manter ocupado por mais uns instantes. Evita desta maneira que esteja sempre ali colado a espreitar, por cima do seu ombro direito, sempre à espera de respostas. Este regresso das amigas trouxe-lhe o mote de presente.

- Sabes o que seria mesmo simpático da tua parte priminho!? Ires ver se é mesmo verdade o que acabaste de me dizer. Eu não posso sair daqui porque estão todos de olhos postos em mim. Mas tu, tão amigo que és, podias fazer-me esse favorzinho. Vai lá ver se a tia Joana já tem a Nana e a Marafona. Pode ser Luís, pode?

Seria impensável recusar alguma coisa a Maria. Tão rápido como o pedido, Luís saiu da mesa em direcção aos verdes espaços do exterior da tenda que alberga o imenso restaurante improvisado da boda.

Mariazinha tem agora maior liberdade para criar os desenhos das próximas etapas. Era imperioso que conseguisse invocar Chalchiuhtlicue através dos seus desenhos. As grandes superfícies geladas de Izteecayan preparam-se para embalsamar a alma do avô Serafim, preparam-se para a deixar para sempre abandonada algures na sua imensidão branca.

As mágicas figuras de Maria terão de trazer até esta dimensão glacial a grande deusa das águas.

Quetzalcoatl e Chalchiuhtlicue assinaram um pacto secreto.

Quando a quarta construção da humanidade foi destruída pela fúria dos elementos aquáticos que a inundaram por completo, a grande anaconda ficou furiosa com a atitude extrema levada a cabo pela deusa Chalchiuhtlicue. Por tempos intermináveis as duas divindades não conseguiam manter atitudes dignas na presença uma da outra. Quando, por algum acaso, se encontravam, o que acontecia era indigno de deidades tão paradigmáticas. Ao fim de um rol de infinitas brutalidades, os dois resolveram selar um pacto de não agressão. A grande deusa das águas, senhora dos mantimentos, considerou-se responsável pela destruição da quarta construção da humanidade e prontificou-se perante Quetzalcoatl a prestar as ajudas necessárias aos trabalhos de reconstrução. Mais acrescentou, que para qualquer outro tipo de tarefa, desde que a função fosse das suas atribuições, estaria sempre pronta a colaborar com a grande cobra alada sem questionar as virtudes do pedido.

Quetzalcoatl necessita, como nunca, da ajuda de Chalchiuhtlicue. O seu corpo encontra-se destruído, cortado em quatro partes desiguais. Terá de ser lavado, emergido e purificado nas águas correntes mais puras, proporcionando o crescimento restaurado ao corpo da grande anaconda. Será necessário chamar a grande deusa através dos mágicos desenhos de Maria. Não é possível arranjar uma outra forma de a fazer chegar até si. Maria tem de conseguir desenhar Chalchiuhtlicue com mestria e manter esse seu último trabalho bem guardado como um verdadeiro segredo de deuses.

Sem Quetzalcoatl restaurado, a viagem dos avós por terras de Mictlan ficará para sempre comprometida. Maria tem na força da sua arte a capacidade de dar solução ao problema.

As linhas encantadas começam a aparecer no lado esquerdo da pequena folha de papel. Maria desenha um tapete que serve de aconchego ao corpo despedaçado de Quetzalcoatl. Uma figura feminina com os braços erguidos em posição de adoração surge no topo esquerdo da tapeçaria, reclama pelos sagrados poderes de Chalchiuhtlicue. Ao centro do tapete o mar e a terra surgem entrelaçados subindo em direcção ao céu como um pequeno tronco de árvore. Um grande caldeiro cerimonial recebe o corpo de Yatughuman, no topo direito do mesmo tapete. De uma pequena abertura do imenso vaso, sai sangue do índio que se mistura com o corpo decepado da cobra. Maria desenha Chalchiuhtlicue do lado direito da folha, nos seus trajes e adornos mais sumptuosos, vestida com uma bonita saia "chalchihuile" e com o manto trabalhado com mosaicos de conchas, pele de serpente e pequenas plumas brancas. A cabeça adornada com uma coroa muito elegante, igualmente trabalhada com pele de serpente. São perfeitos em pormenor os traçados delicados de Mariazinha. Desenhou, preso no nariz da deusa das águas, um anel de mosaico turquesa em forma de réptil, e uns adornos nas orelhas feitos com o mesmo material. Em cada braço, à volta dos pulsos, braceletes de turquesa com pequenas sinetas douradas. Desenhou ainda em Chalchiuhtlicue duas listas negras que nascem na parte superior do maxilar esquerdo. Descem por baixo do seu rosto na direcção do pescoço, subindo novamente até ao maxilar direito onde terminam.

Chalchiuhtlicue prepara uma mistura sagrada com as águas correntes purificadoras, com o sangue de Yatughuman saído do pote cerimonial, com os pedaços de terra retirados da árvore que nasceu no centro do tapete e com o sangue derramado por Teresa na superfície gelada de Izteecayan. A deusa das águas e senhora dos mantimentos aplica este bálsamo purificador no corpo decepado de Quetzalcoatl, especialmente nas zonas feridas e cortadas pelas lâminas de gelo. Após este tratamento, o corpo despedaçado de Quetzalcoatl é colocado com o restante líquido consagrado no interior do pote cerimonial que Chalchiuhtlicue coloca às costas.

No final da sua espantosa ilustração, Maria desenhou o corpo renovado da grande anaconda alada a sair do caldeiro pelo mesmo orifício por onde o sangue de Yatughuman fora recolhido.

Quetzalcoatl voou rapidamente da folha pautada de Maria em direcção às terras do norte, rumo à longínqua e misteriosa Mictlan.

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