46 - NASCER


Improváveis sonoridades com vozes de crianças e de mulheres escutavam-se ao longe, sem nenhum instrumento a vesti-las, somente o timbre natural daquele coro. O ritmo da corrente que transporta o corpo de Teresa como um embrulho aumenta de intensidade. A velocidade com que avança cresce cada vez mais.

O seu corpo vai subindo e descendo despropositadamente ao longo da digressão. As estrelas do céu acompanham-na nesta parte do trajecto à mesma velocidade, passam velozes na direcção contrária à de Teresa, provocando no rio vermelho uma mágica sinfonia de cometas que lhe iluminam a correnteza. São, seguramente, milhares de minúsculos pontos luminosos que transformam aquele ziguezaguear vermelho num sedoso cabelo ondulante com tranças feitas de luz.

Com a mesma velocidade das estrelas que passam por ela, Teresa sentiu o corpo a subir das profundas águas do leito do rio até perceber uma claridade rosada a pintar as águas que a vão cobrindo. Os olhos já não ardem ao abri-los.

Esperar toda esta eternidade não lhe tinha passado pela ideia. Revolver as entranhas da vida com a paciência dos penedos, com a estreiteza de um suplício, respirar os mais insuportáveis odores para depois tentar arrancar Serafim ao compromisso do seu querer. Que ninguém pense que o esforço dispendido por Teresa nesta contenda se quedará imprudente nesta etapa vestida de sangue.

- É uma força gigante, uma força tão poderosa que a mãe não pode imaginar. A avó vai acabar por trazer o avô Serafim de volta! Não se preocupe, tudo vai correr bem!

Valquíria nem queria acreditar nas palavras da filha. Deseja que tudo o que lhe vai desvendando seja a mais pura das verdades! Tamanha convicção disparada assim sem pinga de receio muita estranheza causaram à noiva. O olhar de Maria irradiava certezas maduras demais para a sua tenra idade. Ia desembrulhando estas pequenas novidades acerca do paradeiro dos avós com a maior das naturalidades.

O espesso caudal avermelhado tornou-se menos denso e mais salgado. Teresa começa a sentir necessidade de sair do turbilhão vermelho onde navega. Os pulmões descarregam o líquido que os invadiu neste trajecto. Pedem por uma golfada de ar puro bem carregada de oxigénio. Uma tosse insuportável parece querer arrancá-los de dentro do seu corpo que vai experimentando uma dor física indescritível.

Esta mesma dor é servida a todos os seres vivos ao nascer, é como um tiro a trespassar o corpo junto ao peito. Depois é arrancada das memórias para que se passem os primeiros instantes da existência sem o peso desse tormento. Alguns deles, muito poucos, voltam a provar pequenos tragos da recordação desse suplício inicial sem que lhes seja dada explicação para o fenómeno.

Adormecem novamente por causa da violência da recordação.

Teresa quer manter-se desperta apesar da intensidade desta dor, apesar da descomunal dimensão do seu sofrer, apesar de ambicionar desaparecer para bem longe destes caminhos o mais rápido possível mas com o troféu resgatado vitoriosamente no regaço.

- Luas que no céu escuro dormem ocultas, venham acudir-me nesta passagem de loucura! Venham dar-me a concentração necessária para que as dores em mim cravadas através destas garras feitas de lâminas sejam menos afiadas e cruéis! Se as privações e martírios são estes que se estendem ao meu redor, a vossa ajuda é indispensável. E Maria, minha neta, que não me sai do pensamento. Cada recordação sua sai disparada como bala mortal na direcção do meu peito, dos meus ombros e da minha cabeça! Não sairei deste lugar sem levar comigo quem aqui venho procurar. E depois chega a vontade de fugir sem conseguir, chega esta desassossegada vontade de querer ser uma força que já não se alcança.

Maria entende os olhos tristes de sua mãe, entende a estranheza contida no brilho perdido mas ainda esperançoso do seu olhar. Uma ligação muito forte estava a ser mantida entre avó e neta, tão longínqua quanto improvável, como se os seus corações fossem um pedaço de sol, de chuva e de saudade misturados no corpo infantil de Mariazinha. A força transformada em ternura, transformada em esperança, era transmitida à noiva atordoada apenas com o calor do seu sorriso e com o toque amigo da pequena mão de Mariazinha a retocar o caracol voluntarioso do cabelo de Valquíria.

- Não te apoquentes mamã, não vale a pena, já te disse! No final deste dia magnífico, as recordações que guardarás serão das melhores de toda a tua vida, e estes pequenos momentos de estranheza esquecê-los-ás rapidamente, serão como aqueles pequenos grãos de areia que trazemos agarrados aos pés depois de um bonito passeio à beira-mar ou de um inesquecível dia de praia.

Teresa não sabe como descobrir Serafim no centro daquele imenso caudal rosado e salgado. O imenso rio vermelho transformara-se num mar sem fim de ondas brancas e rosadas. A foz daquele amazonas de sangue é de uma dimensão inexplicável. Alarga-se para além do alcance da vista dos homens e as suas águas transformam-se nas histórias perdidas das almas dos que lá foram chegando.

Serafim encontra-se por ali a procurar o seu caminho, a decifrar qual será o seu percurso. Teresa desceu corajosa pelo mesmo caminho de sangue. Yatughuman, o índio, deu-lhe tamanha guarida que se lhe encheu a alma com uma audácia desmedida, tão desmedida quanto a paixão que sente pela sagrada construção de sua vida, pela sua extraordinária e sagrada tribo.

- A avó está muito perto de se encontrar com o avô! Passaram tantos anos e tanto cansaço por sobre eles que precisavam de se retirar para se reencontrarem, mamã! Nada mais se pode fazer senão esperar. E eles bem merecem este tempo de intervalo. O momento escolhido para o fazerem é que parece não ter sido o mais apropriado.

Quetzalcoatl fizera chegar Serafim até às portas de Mictlan embrulhado em forma de esperança. Xolotl descarregou-lhe as mais recentes memórias e serviu-lhe um cenário de escuridão silenciosa num local reservado e de difícil acesso.

- São tão incomensuravelmente frágeis os humanos! Pensar que podem destruir esta quinta construção sem lhe abonar a esperança de um remédio. As almas que agora nascem surgem carregadas de escuros pigmentos ao invés das esperançosas cores das que nasciam outrora. O meu irmão que se cuide! Prefiro de longe os prazeres sombrios saídos destes ossos que Quetzalcoatl cobriu com o próprio sangue. Tornam a humanidade um organismo bem mais arejado e imperfeito, como entendo que deve acontecer. E a senhora que deseja proteger o marido aqui chegado nestes preparos, que se cuide ela também! Lá porque o maninho se entretém neste seu passatempo milenar a tentar encontrar explicações para a enigmática taxa de insucesso desta quinta criação, essa paranóia só a ele diz respeito! Eu não quero ter nada a ver com isso.

Xolotl deriva os pensamentos nesta forma de impaciência tresmalhada. O irmão sabe bem com aquilo que não pode contar e preparou Teresa com a novidade daquele conhecimento. Ser capaz de escutar as palavras sem que elas saiam pelas bocas de seus donos, permitia-lhe agora saber que, algures numa daquelas ilhas que habitam a foz do imenso rio, está o gémeo de Quetzacoatl a urgir pecados num lugar bem perto de onde se encontra.

O tempo impõe-se a Teresa e fornece-lhe mais um castigo.

Serafim tem de ser extorquido sem demora das vontades preversas de Xolotl.

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