43 - TERRAMOTO


Já vai sendo tempo de acordar.

Os limites da tolerância estavam a esgotar-se.

O sono acalmou Teresa. Uma sensação de bem-estar viaja pelo seu corpo como não sentia há muito.

- Mais parece um pulo no tempo. Nem que passem mil anos este jejum na consistência do que é realidade, do que é compreensível não mais será por mim esquecido.

Os passos ouvidos à entrada da cabana descobriram-lhe a vontade.

- Sinto-me pertencer a todo o mundo mas não ser de mundo algum. Amigo índio, neste momento dava-me algum conforto se conseguisse perceber as minhas palavras. Preciso de desabafar com alguém e lamento que não possa compreender a minha linguagem. Seria um óptimo consolo.

Yatughuman entrou nos aposentos de Teresa. A senhora estava com um aspecto muito mais recomposto e tranquilo. As surpresas e sobressaltos das últimas horas tinham sido muito poderosos. O que ainda se espera de si, o que terá de suportar para tentar recuperar Serafim para o lado de cá das suas vontades, não lhe passa pela cabeça. Essa será uma outra história, serão outros tormentos. Não é este o tempo correcto para dar a conhecer a Teresa a informação.

Necessita de desabafar, de dar conta das maleitas de alma que lhe consomem e corroem a existência, dar conta do tempo viajante que como uma gigantesca maré, carrega e transforma as vidas de todos com perversa velocidade.

- Se a senhora assim o desejar, a linguagem dos segredos, dos gestos e das secretas mensagens da alma, essas são para mim de fácil compreensão. Não necessitamos de falar ou lançar sons em forma de palavras. Quando nos recordamos e damos uso desta capacidade esquecida de nos fazermos entender através das mensagens de alma, uma sensação estranha e muito misteriosa percorre o nosso corpo como um calafrio, dando-nos sinal. Por esse motivo, se o desejar, melhor será dar uso a esta passagem das palavras e das ideias sem a irritante barreira da incompreensão. Eu aqui estou para a ouvir!

Teresa estava estupefacta. Exactamente como Yatughuman tinha mencionado, um forte calafrio percorreu-lhe o corpo de alto a baixo, uma iluminada e melodiosa voz dava-lhe compreensão de todas as palavras que acabaram de lhe ser comunicadas pelo índio.

- Mas é absolutamente extraordinário! Como é possível? Como se conseguem fazer entender tão bem e sem qualquer dificuldade as suas palavras? E os lábios e a boca que não se movem. O sorriso que nos serviu desde a nossa chegada transmitiu-nos segurança e simpatia. Agradeço desde já tudo o que nos tem proporcionado, a forma gentil como nos recebeu e como nos tem ajudado. Não consigo entender esta barafunda irreal que semearam nas nossas vidas. A paciência e dedicação das simpáticas meninas, a abundância de frutas e de bebidas, tudo aquilo que tem sido por vós feito para nos sentirmos bem recebidas, eu vos agradeço em nome da minha família. Se é certo que nos devemos debruçar sobre o que ainda não compreendemos, se é certo que por mim já muitos pensamentos incómodos me feriram a razão, também é certo que a dimensão surreal de todos estes acontecimentos ultrapassam claramente a minha capacidade de entendimento.

E Teresa aproveita esta novidade como uma criança ao receber um brinquedo novo.

- Não me apetece envelhecer, a alma a ficar cansada, os sonhos a deixarem de ter o brilho de outrora. Pudesse a minha coragem dar-me forças para dominar o tempo, poder dar-lhe a luta que merece. Que festa faria então! E o tempo deixaria encaixotado mansamente numa redoma vidrada para depois retirar, pedacinho a pedacinho, os mais doces instantes a meu bel-prazer.

Seria mesmo uma empreitada festiva caso assim pudesse acontecer.

- As chegadas e partidas das pessoas que mais nos marcam acontecem cada vez com mais brutalidade. É como se um pedaço das nossas vidas as acompanhasse quando se despedem de nós. E a senhora não parece estar segura do que sente acerca da escolha levada a cabo pelo senhor seu marido! Essa espécie de nevoeiro que lhe atormenta a razão, essa neblina nervosa que lhe vai perturbando a espera não a desejava de todo experimentar. As trincheiras que desfrutam provocaram todo esse desgaste, e o chão que vos esconde abre-se cada vez mais e mais numa profundidade tamanha que quase impede a chegada da luz do sol às vossas vozes. E sem diálogo, parece que as forças deixam de fazer qualquer sentido. Este meu pensamento apenas surge na tentativa de lhe dar alguma ajuda, tentar fazê-la compreender que é perfeitamente justo e normal sentir-se assim neste momento. As almofadas da alma, essas eternas amigas, é que vão ficando cada vez menos confortáveis.

Teresa sentiu as pedras duras das suas montanhas de coragem estremecerem ligeiramente, darem sinais de um ligeiro terramoto a abrir pequenas brechas, nada mais do que isso, é certo, mas as muralhas gigantescas da sua fortaleza provaram ser, ao fim e ao cabo, tão humanas como os alicerces que as escoram.

Não desejo a morte de Serafim! As coisas já não se parecem nada com aquilo que conseguimos construir quando éramos jovens. Já lá vai o tempo em que seguíamos às cegas as ordens saídas de nossos corações. Mas a sua presença faz parte de mim, tanto quanto as dores causadas por estes novos sentimentos. Temos tudo o que somos transformado em carne, em amor, nas nossas filhas, nas nossas netas e netos, em tudo o que fomos e construímos em conjunto. Não consegui impedir as imagens de acalmia que este afastamento me gravou nas ideias. E o amigo índio, consegue dar algum entendimento ao que vou expressando?

Yatughuman sorriu. Sabia quanta esperança estava escondida em Teresa, toda ela em forma de coragem, de mãe coragem.

É desse calor que terá de retirar o alimento para a missão que a espera, para a viagem pelas profundezas do rio vermelho até às portas de Mictlan, onde Xolotl mantém suspensa a alma de Serafim.


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