51 - BRANCO


Com as portas abertas e as fontes do delírio descarregadas, Teresa e Serafim encontram-se numa nova dimensão da viagem. O frio gela-lhes os corpos. Sentem as carnes a estalar de dor, as peles secas e gretadas, negras das queimaduras provocadas pelo vento cortante daquele novo enredo. Serafim não padece tanto nestas novas paisagens de Mictlan. A imensidão gelada daquele branco relembra-lhe as jornadas não realizadas pelas montanhas do topo do mundo. São estaladas que recebe com extremo prazer.

Teresa ficou para trás, agastada com a temperatura destas paragens. Cerrou os olhos pois o brilho intenso ameaçava cegá-la. Serafim não se importou com esse facto e vislumbrou tudo o que a paisagem vestida com os trajes das neves eternas, com o manto da grande senhora de branco, lhe ia ofertando. Os seus olhos não resistiram a tanto fulgor e cegaram rapidamente. Os pés caminhavam sem destino, arrastando um Serafim cego, mas feliz, pelo meio do mais inóspito deserto gelado alguma vez arquitectado.

Agarrou gomos de neve com as mãos que depois levou à boca para amansar a fome e a sede. Beija os flocos de neve com um prazer infantil, deita-se a sorrir com o seu corpo já em forma humana, agastado, cicatrizado, quase arruinado, para cima daquele colchão desprotegido com um sorriso nos lábios. Xolotl ficou visivelmente irritado com o prazer que Serafim retira desta quarta dimensão de Mictlan. Por vezes os deuses acabam fintados pela satisfação que os humanos experimentam com situações aparentemente despropositadas.

Quetzalcoatl sabia que o irmão se surpreenderia com a reacção da alma perdida de Serafim e que esta etapa da jornada seria bem mais tranquila para ele do que para Teresa. Terá de lhe proporcionar alguma ajuda para que não saia derrotada nestas geladas passagens de Izteecayan, a quarta dimensão de Mictlan.

Um vendaval infinito varre a alvorada desorientando Teresa por completo.

Na sua dupla cegueira, Serafim perdeu rasto de todos os sinais da mulher que se encontrava semi-coberta por muita neve e por pedaços cortantes de gelo tão afiado como finas lâminas de metal. Sangrava abundantemente das feridas que lhe tinham sido provocadas e perdera todas as forças. Caiu desamparada no manto gelado que a aprisionou.

Quetzalcoatl não pode manter-se por muito mais tempo alheio a esta situação. O irmão continua furioso com a reacção de Serafim às extremas condições proporcionadas pela quarta dimensão de Mictlan. Descobre, com uma raiva incontida, no meio das geladas montanhas, uma parede de gelo tão alta como alta é a dimensão das cúpulas celestes que iluminam a paisagem. Avançou nessa direcção com tanta velocidade que o choque produzido destruiu completamente a torre feita de gelo. Os seus milhares de pedaços voaram em todas as direcções e com tamanhos muito diversos.

A primeira intenção procurada por Xolotl para este acto exagerado era que o corpo de Serafim fosse despedaçado pelos afiados projécteis saídos da imensa destruição. Os longos punhais de gelo dispersaram-se numa dança tão caótica quanto bela. A luz que os atravessou nesse voo assassino foi refractada e transfigurou-se nas muitas cores do arco-íris.

Serafim tinha as mãos cheias de pequenos montículos gelados que saboreava com agrado quando o gelo começou a voar certeiro na sua direcção. A grande anaconda alada, quase invisível na sua branca forma, mimetizada pela idêntica cor da paisagem, voou rapidamente para fornecer um escudo protector ao corpo de Serafim. À maioria das lâminas de gelo conseguiu dar combate, partindo-as com a rigidez singular da sua carapaça de réptil. As asas saíram muito mutiladas ao longo da luta, perderam grande parte das suas plumas. Três lâminas conseguiram atravessar o extraordinário corpo de Quetzalcoatl, cortando-o em quatro partes com uma eficácia divina.

Serafim permanecia agachado a saborear na escuridão o sabor fresco daquele chão branco. A grande cobra manteve a essência da alma deste homem protegida das vontades do irmão mas acabou por servir a Quetzalcoatl uma inimaginável provação. O corpo cortado em quatro pedaços.

Mariazinha deixou cair para o chão a caneta esferográfica preta que a tia Joana lhe tinha emprestado. Quando se preparava para realizar mais um conjunto de estranhos desenhos, sentiu um forte aperto no seu peito pequenino que lhe arrancou o ar dos pulmões com imensa violência. E um arrepio gelado percorreu-lhe o corpo de alto a baixo tal como a amiga cobra lhe disse poder vir a acontecer.

Na viagem em que Quetzalcoatl transportou Maria de regresso à boda, muitos foram os segredos partilhados ao longo do trajecto.

A menina ficou a saber que este mundo em que vive é um mundo doente, tão doente como o coração do avô Serafim. Os homens que a grande cobra branca ajudou a criar com tamanha dedicação ganharam hábitos tão irracionais que a única esperança de salvar a quinta criação da humanidade reside em meninos e meninas como Maria.

Quando a grande cobra lhe surgiu vinda da escuridão da noite tempestuosa, rápida e sem aviso, qualquer mortal teria ficado petrificado com temor. Mariazinha recuou ligeiramente como se uma estranha premonição lhe tivesse antecipadamente comunicado a visita. Ao fazê-lo, tropeçou num pequeno utensílio doméstico, acabando sentada no chão. Os olhos da menina nunca deixaram de fitar os da grande anaconda alada que já não se recordava da última vez em que uma situação idêntica tinha ocorrido.

Este pequeno sinal transporta um importantíssimo significado.

O coração de Maria carrega as forças vitais mais importantes da criação do primeiro universo. Quetzalcoatl tinha de a informar dos muitos poderes que desconhece. Tinha também de anunciar aos seus avós qual a verdadeira dimensão da sua importância e como são tão necessárias as ajudas que terão de lhe proporcionar nesta fase da sua existência. Ao transportá-la de volta a casa essa informação foi-lhe transmitida. Muitos desses míticos poderes e segredos só vão sendo revelados na exacta medida das necessidades.

O que Maria sente no seu peito neste preciso instante é o mesmo abandonado pavor que vai consumindo a avó nas gélidas paisagens de Izteecayan. É o mesmo cortante arrepio que mutilou em quatro partes o corpo de Quetzalcoatl.

Mictecacihuatl, senhor governante de todo Mictlan, tinha acautelado a sua desforra de Quetzacoatl através desta irónica e maquiavélica teia que teceu ao redor dos dois irmãos. Xolotl foi um joguete nas poderosas mãos do deus da morte, um fantoche utilizado com tamanha mestria que acabou ele próprio por provocar ao irmão a terrível provação de ser esquartejado ao tentar proteger Serafim.

Maria sentiu o coração parar um bocadinho. Mostrou-se corajosa contendo o medo. Sabe que o futuro de todos os que ama, e até o futuro da poderosa amiga aliada, dependem das suas capacidades extraordinárias em fazer face ao imprevisto, por mais bizarro e sombrio que ele se apresente.

Respirou com bravura duas grandes bolas de oxigénio, baixou o braço até que a mão conseguisse resgatar a caneta esferográfica do chão que a recebera. Virou-se para o primo Luís, que continuava com aquela cara de espanto a olhar para si, pediu-lhe que lhe desse mais duas folhas do pequeno bloco e voltou novamente a rabiscar estranhos personagens nas mais incompreensíveis e fantásticas missões.

Mictecacihuatl tinha ficado dono e senhor do destino dos seus avós nesta quarta dimensão de Mictlan.

Quetzalcoatl terá de se recompor depressa do esquartejamento causado por Xolotl de forma tão inadvertida. Os dotes artísticos de Mariazinha irão proporcionar a ajuda necessária para esse efeito.

O futuro desta tribo começou a partir deste exacto momento a estar dependente das capacidades mágicas de Mariazinha, tal e qual a grande cobra lhe tinha comunicado.

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