39 - DESCOBERTA


( em pensamento ) - Não sei se é mentira ou verdade o que se faz entender em mim neste momento. E as palavras que me envolvem o espírito, estarão elas mesmo a acontecer? Um abraço cansado e invejoso, uma envolvência triste e desfocada. Mal de mim se este é o meu pensar de agora. A única coisa que desejo é descansar. Seria francamente injusto apagar-se desta forma a minha existência. Isto que me está a acontecer não tem explicação. Não posso dar a conhecer a ninguém esta experiência caso se venham a alterar as circunstâncias do que entendo ser a realidade dos sentidos comuns.

Não deslizam mais segredos ou qualquer outra partícula esperançosa pela minha vontade. E que insustentável derrota a minha não ter tido a consciência de temperar o meu tempo de vida de maneira mais sensata. E se o tempo é trôpego, mais o é quem desespera sem notar os seus ditames. Estão a trabalhar códigos indecifráveis na minha alma. Desencontros a par de uma parafernália de discursos desconexos com dimensões desmedidas que não consigo apagar. A Teresa Maria sabia muito bem o efeito que as suas palavras me causavam. E nunca se fez rogada em usá-las com veemência sempre que as causas a defender mereciam a sua intervenção. A vitória caía invariavelmente no seu regaço com serenidade.

Descobri, destrui e fretei animosidades, tantas feridas abertas com pouca mestria, a julgar-me dono e senhor da verdade dos factos, como quando as meninas destruíram a sensatez da virtude com as poucas defesas dadas às suas vontades adolescentes. Trouxeram-lhes a idade adulta antes do tempo. Antes que me vá, antes que se apaguem de vez estas vozes e estas imagens, estas informações esparsas e já difusas, queria sentir de novo o doce cheiro das garotas quando nasceram, o perfume suave dos seus sorrisos.

Depois de a minha cabeça produzir as despedidas, nem que seja só para acalmar esta raiva inconsistente que não leva a parte alguma, quero finalmente deixar de te escutar em mim, quero perder-me pelos aniversários a que não assisti, pelas secretas vontades que não ultimei e por todos os locais por onde não passeei.

Os aromas já não querem nada comigo, não querem mesmo nada comigo. As luzes apagam-se e os barulhos das crianças, lá bem ao fundo, muito baixinho, são a única lembrança de vida que ainda temperam esta alma que me pertence.

Quetzalcoatl continuava a arrastar o corpo entorpecido de Serafim pelas profundezas aquáticas do rio vermelho. Conseguiu escutar estas conversas secretas mantidas entre Serafim e a sua própria memória de vida. Esse é o trabalho que lhe é requerido. E avança num lento e amorfo ziguezaguear pelo mar dentro, onde o vermelho carregado se vai diluindo em muitas tonalidades de um rosa bem mais suave e salgado. Resolvera segurar o desvanecimento descontrolado desta alma semi-perdida.

A menina Mariazinha acordara na grande serpente uma inusitada esperança. Fê-la acreditar tanto nela, no seu pequeno pedaço de Mundo, que a imensa anaconda se tornou sua aliada. Será um ser humano ainda mais luminoso se não perder já a companhia amiga do avô. E se as fortes determinações que o dominam voam ligeiras na direcção do sossego, tudo o que ainda possa fazer para interromper este sentido de abandono será feito sem hesitações.

Para o conseguir, terá de reparar essa querença. Esta será uma batalha feroz que terá de travar com a ajuda de seu irmão Xolotl. Conhece melhor do que ninguém as entranhas da escuridão e das trevas, pois estas são o seu domínio e morada. É para lá que escorrega a alma de Serafim, e o seu corpo já não existe, só a imensa revolução abandonada e instável do que lhe resta nas memórias.

Tem de pedir ajuda ao irmão para que este não permita a Serafim a descida às profundezas de Mictlan. Uma menina mágica tinha vindo ter consigo. Há muitos mundos que não lhe era trazida uma assim em destino. Nas suas costas foi transportada, examinada, medida, compreendida e desfragmentada na fragilidade da sua tenra idade.

Xolotl sabe que o irmão não faz regra destes pedidos. A regularidade com que os pratica é, na verdade, nula. Adiar a descida já preparada nas intenções de um viajante para transformar um Mundo é caso único e verdadeiramente insólito. O gémeo, que lhe trouxe assim agarrado neste pedaço de corda o corpo adormecido, nunca se deteve antes numa operação tão requintada de salvação.

Que poderes tão extraordinários possuirá essa pequena menina mágica que o irmão Quetzacoatl disse ter conhecido?

Xolotl ficou deveras intrigado com a atitude do irmão.

Porque insistiu ele em assumir formas humanas diante da desesperada mulher que traz protegida na aldeia que criou a pedido das luas e das tempestades? Segundo consta, senhora deste que até si trouxe arrastado.

E que dizer de Quetzalcoatl feito índio Yatughuman, decidido e tranquilo, tirado do seu manancial criativo? Era mais uma dádiva protectora para a vida dessa menina mágica e misteriosa. E todas as crianças que decoraram a chegada das senhoras à aldeia, chamadas pelo irmão para amenizar o desespero causado pela súbita ausência deste homem tão importante para as suas vidas.

Era uma estranha e inusitada lista de práticas desiguais acrescentada à missão do funcionário Quetzalcoatl, seu irmão.

Xolotl só pode dizer que sim ou que não. Controlar a seu gosto quem batalha e avança pelas várias dimensões de Mictlan é uma tarefa que, por vezes, gosta de partilhar com o irmão. Opta propositadamente pelo local errado do sucesso para se divertir a travar com ele gigantescas batalhas. Depois perspectivam novos rumos e novas regras para o jogo cruel que têm de continuar a praticar.

Mariazinha e Teresa Maria continuam a aguardar, suspensas mas com esperança, pela resposta que a selva mantém escondida delas, encerrada bem no fundo dos seus corações.

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