37 - ALMA


Ao chegar o amanhecer agitaram-se, serpenteantes, milhares de quilómetros de um rio vermelho onde Serafim desejou entrar, um amazonas cor de sangue que abrigava tantas vontades e que o arrastou por ele abaixo até Teresa o perder de vista. A dor de perder novamente Serafim sem nenhum aviso voltou a acontecer. Amá-lo já não era suficiente para o trazer de volta à aldeia.

Desejou fugir para poder pensar e atirou-se bem para o centro da correnteza desconhecida. Com o corpo gasto e sofrido, sem conseguir respirar, tombou, desligou o pensamento, fechou os olhos e deixou-se flutuar para sentir somente a espuma vermelha a tapar-lhe as emoções.

Teresa não arranjou forças para o acompanhar. Esta era uma parte do passeio que Serafim tinha de transpor sozinho. As ajudas fornecidas causariam o efeito inverso ao desejado. O seu pensamento está com Mariazinha, que se mantém ausente, perdida em parte incerta nesta terra remota de que só Deus sabe o paradeiro.

Uma estranha sensação de liberdade começou a trespassar o corpo morno e ensanguentado de Serafim. Sentia-se leve e não necessitava de fazer qualquer tipo de movimento para se manter à superfície. Fechou os olhos e percebeu na mão direita fechada a forma esguia da corda que manteve agarrada com intensidade.

Queria descansar, queria gozar um momento de solidão infinita, de egoísmo e de escuridão. Mas poder ambicionar secretamente que tudo pudesse voltar a acontecer da mesma maneira.

Poder amar sem querer saber se o amor dói ou faz sofrer, querer pensar sem estar acordado, sem se cansar. Obter respostas ao sabor das dúvidas.

Embrulhado como um presente, o corpo de Serafim fazia agora parte da imensa correnteza vermelha que avança como lava vulcânica pelo anterior leito verdejante do grande rio.

Os meninos índios correram atrás de Serafim quando este arrancou desenfreado pela floresta dentro.

Yatughuman permaneceu na porta de entrada da sua cabana depois de ter sido transportado às costas de Quetzacoatl. Não podia abandonar Teresa sozinha na aldeia deserta. Apaziguou a sua dor escutando-a enquanto esta chorava baixinho. Não eram fingidas as lágrimas que lhe corriam pelo rosto e que as mãos limpavam sem darem conta. Ainda mal se conseguia levantar, assim que os seus pés lhe conseguiram dar sustentação eis que Serafim abalou perdido na direcção de um outro desconhecido como se de um louco se tratasse. O espaço percorrido até ao coração desconhecido do centro daquela floresta tinha sido um mistério.

Serafim queria sentir o corpo desfazer-se sem que a vida dele abalasse. E agora já não se fazia escutar a voz meiga e simpática do plátano, já não se via a imagem defensora do rosto do avô Xavier, já não se sentia o calor doce da mão de Teresa. Só se mantinha na boca o sabor amargo do chá de Yatughuman, a irritação acre causada na garganta pelo sopro oxigenado da gigantesca cobra alada e o borbulhante e espesso toque aveludado daquele rio vermelho que lhe mantém a pele morna e aconchegada.

Teresa precisa de descansar. Durante o sono da madrugada anterior tinha visto a sua neta Mariazinha desaparecer da cabana que consigo partilhava. Nunca mais a viu até o encontro inesperado com o marido na habitação do chefe.

O sonho e a realidade misturam-se como não julgava ser possível, e as palavras que sente perdidas no seu pensamento não lhe fornecem pistas nem tão-pouco as ajudas necessárias a tanto desconforto. Só Yatughuman se mantém de pedra e cal a aguardar servil o que dela possa acontecer.

A tempestade tropical não parece ter vontade nenhuma em se acalmar. O rio que viu as suas águas transformadas naquele vermelho assustador, pincelou os céus no mesmo vermelho carregado e arterial, caindo agora cascatas de um intenso rubro que vai transfigurando o verde selvagem da paisagem.

O índio retirou rapidamente Teresa do centro da praça onde tinha permanecido de olhos postos no céu como que a aguardar dali algum tipo de resposta. E não vinha de cima mais nada para além daquela misteriosa chuva vermelha que começava a cair cada vez com maior intensidade.

Serafim deixou de sentir o corpo mais uma vez. Estava tal e qual naquele momento em que na cabana se tinha sentido fora do corpo, a levitar como alma por cima do palco da acção.

Tudo se passa de maneira muito misteriosa. A tranquilidade do passeio pelo ar, que tinha começado tão inocente na companhia de Horácio, seu velho amigo de infância, estava bem para lá de toda a sua capacidade de compreensão. Nada mais lhe interessava, nada mais fazia sentido e o tempo deixou de se fazer escutar como até então tinha acontecido.

O rio parou de avançar.

A chuva parou de cair do céu.

O vento deixou de soprar.

O silêncio tomou conta de todo o vermelho que mantinha empacotado Serafim.


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