27 - XAVIER



Mais segredos para salvar o dia do casamento.

Serafim seguia pela margem do lago. Sentia nos pés os seixos frios que a vestiam. O tempo não se percebia por aqui. Apareciam-lhe imagens perdidas recuperadas pela sua memória. O rosto do avô Xavier, alegremente sentado nas escadas da sua casa, algures no meio da serra onde gostava de se perder em longas caminhadas com o Sereno, companhia de tantos anos de vida de pastor. Sentia-se sonolento, entorpecido, e deixou de sentir o frio da caminhada, deixou de sentir a humidade e o desconforto provocado pela nudez do seu vestir. Apenas conseguia vislumbrar o rosto do idoso, a enrolar a mortalha com que aquecia e perfumava as viagens. Era tão característico o perfume adoçado que emanava das nuvens que ia criando. Lá estava ele sentado, no final do dia, nas escadas que davam acesso à porta de entrada da casa da aldeia. Ia afagando a cabeça do amigo Sereno que lhe obedecia cegamente. O cão pastor era imenso, parecia um pequeno urso enrolado sobre si próprio, de focinho muito negro e altivo. Ficava aninhado junto a Xavier, aguardando as instruções seguintes com total fidelidade.

Serafim não conseguia perceber porque lhe aparecera a figura do avô sem dar aviso. Os olhos do pastor fixavam-no como se estivesse a ler-lhe os pensamentos, e sorria, com a cigarrilha por acender encostada ao canto da boca, a mão esquerda afagando a cabeça do cão, tudo a preto e branco como o cenário por onde passeia.

Não carecia de diálogo esta aparição. O rosto do senhor seu avô dava-lhe todas as indicações necessárias. Fosse qual fosse a intenção da sua vontade, não teria que recear qualquer das escolhas.

Estavam a ficar sem o sol. As tardes húmidas da floresta Amazónica deixavam já antecipar a escuridão da noite e dos descansos. Maria e Teresa eram tratadas com todas as atenções por quatro jovens senhoras índias que as encaminharam para o abrigo de uma enorme habitação delicadamente despida de decorações. No solo encontravam-se tapadas as terras macias com pequenas carpetes trabalhadas com fibras naturais. Encostadas a duas estacas estavam penduradas as redes de descanso já preparadas para servir de aconchego à passagem da noite. As senhoras índias iam cantando à medida que todo o ritual de apresentação do espaço onde avó e neta iriam pernoitar lhes era comunicado. Foi-lhes mostrado o local onde podiam utilizar água para tudo aquilo que desejassem e um outro, muito perto das camas de rede, onde muita fruta e uma espécie adocicada de massa farinhosa de aspecto simpático foram colocadas para lhes proporcionarem aconchego ao apetite.

O avô Xavier continuava sorridente sempre com o mesmo olhar directo e frontal na direcção do neto, que lhe ia decifrando as intenções. Tinha tantas coisas para lhe perguntar mas a voz não lhe saía pela boca. A figura daquele senhor de pele rugosa sempre lhe causara imensa reverência. Percebia que uma pessoa assim devia trazer marcada em cada ruga milhares de histórias para contar. Mas do avô, apenas se recorda do sorriso que sempre trazia agarrado a si como a boca trazia colada a si a cigarrilha. E o sempre adocicado aroma do nevoeiro que desenhava nuvens em seu redor.

E sempre o sorriso de Xavier a marcar com tamanha intensidade aquele improvável encontro. Serafim sentiu-se tranquilo. A mão já não apertava a corda com a mesma força do início da jornada. Nem o desconforto da nudez, nem o peso de tanto isolamento, nem o desconhecido lugar por onde vagueia, nada o perturba ou incomoda como no princípio do passeio. A testa do avô franziu muito ligeiramente no exacto instante em que Serafim deu alguma liberdade à corda que carrega. Deixou também de afagar a cabeça do Sereno que a levantou de imediato procurando pelo carinho da mão do dono.

Foram tão-somente estes pequenos sinais que a qualquer outro que não Serafim teriam passado completamente despercebidos, que o acordaram de novo para o peso dos sentidos.

O sorriso do avô Xavier, esse, nunca sofreu alteração!

.

Comentários