29 - TEMPESTADE



Caíam bem fortes as bátegas de água, madrugada adentro, na escuridão da selva. Surgiram sem avisar, invadindo vários locais da habitação.

As decisões que contam, as que são necessárias para não serem roubadas as vontades que fazem a diferença, encontram-se em estado de ponderação em Serafim. A chuva vai-lhe molhando o rosto e o corpo desnudado. Não podia adiar por muito mais tempo a decisão a tomar. Apesar de o tempo escassear, este não se mede pelos instrumentos habituais. As fórmulas de medição não são as que se esperam.

Terrível o peso que suporta a sua existência. Perdia-se no rosto do avô o aviso da decisão a tomar.

As imensas árvores que rodeiam a aldeia agitam-se como fantasmas.

Tão inesperada como brutal, a tempestade tropical abate-se por sobre a aldeia. A água cai do céu como um lençol. Impressiona o barulho que provoca, mais do que a quantidade de água que vai tomando conta da escuridão do lugar.

Sebastião está completamente encharcado. Avança cortando o ar quente carregado de humidade. O cinza que veste a paisagem ficou iluminado por relâmpagos que riscam o céu com as suas tão características veias luminosas.

Sebastião apareceu na aldeia no meio desta imensa tempestade.

Ao avançar pelas margens do lago percebera que este se transformara num imenso rio caudaloso que serpenteava sem fim pela floresta tropical. A escuridão que envolvia este trajecto do passeio empurrara-o na mesma direcção de Teresa e Mariazinha.

Ninguém deu conta da sua chegada.

A aldeia era fortemente fustigada pela chuva e por um vento forte que embalava freneticamente toda a vegetação ao redor das habitações. Não entendia o que estava ali a fazer. Não fazia ideia de que Teresa e Mariazinha estavam ali tão perto de si.

Yatughuman tinha-se mantido acordado, alerta, expectante. Desejava que a grande cobra alada não voltasse tão cedo. Sentia um grande aperto no peito sempre que o gigantesco animal o visitava.

Aquelas visitantes não podiam ser suas conhecidas. Vinham de um lugar, seguramente, bastante diferente dos locais frequentados pela grande mãe anaconda.

Ao espreitar a tempestade percebeu que um vulto se encontrava no centro da praça, totalmente encharcado, imóvel, quase fantasmagórico na sua pálida nudez. Em pouco tempo a sua aldeia tem testemunhado estranhos acontecimentos e visitas completamente invulgares. Quem seria aquele senhor que como uma estátua permanecia imóvel no centro da praça? A branca luz dos relâmpagos que iluminam ritmadamente o recinto davam um ar sobrenatural ao vulto de Serafim.

Yatughuman aproximou-se lentamente do centro do recinto dirigindo-se até Serafim, que olhava em redor para as construções que rodeavam aquele palco. Os olhares dos dois homens fitaram-se por breves instantes, procurando respostas para tanta estranheza, tanta dúvida sem peso de palavras.

O índio deu indicação a Serafim para o acompanhar aos seus aposentos. A universal linguagem do gesto comunicava o sentido das vontades aos dois homens, na mesma proporção ritmada com que os clarões iam iluminando os céus naquela madrugada.


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Um compasso de espera se seguiu. As pernas não obedeciam às ordens de Serafim. Permaneciam estáticas, pesadas e nelas sentia um intenso formigueiro que lhe causava desconforto. Serafim pediu auxílio ao índio para sair daquela paralisia. O amparo do ombro direito do chefe foi-lhe cedido e avançaram os dois naqueles preparos até ao refúgio proporcionado pela tenda de Yatughuman.

Mariazinha tinha acordado. O descanso não resistiu ao barulho causado pela forte tempestade. Saiu com cuidado do seu local de repouso e foi ter com a avó que dormia apesar do barulho que ecoava trovejante e ritmado por toda a habitação. Não resistiu à vontade de mirar mais atentamente a tempestade e avançou até à entrada da tenda para admirar a força da natureza.

O que viu depois de aí ter chegado foi muitíssimo assustador.

A cabeça gigantesca de uma enorme anaconda alada apareceu-lhe bem perto do rosto, fitando Mariazinha, tapando-lhe a vista para os dois homens que seguiam amparados no centro da praça da aldeia.

A menina recuou com o tamanho do susto, caindo sentada, sem gravidade, num dos tapetes que cobriam o chão da residência. Permaneceu em silêncio a olhar os imensos olhos azuis da enorme cobra. Um nervoso miudinho tomou conta de si. Os clarões que continuavam a iluminar a entrada eram reflectidos com tanta intensidade pela brilhante pele do animal que parecia possuir uma luz interna. O seu corpo era branco, escamado, manchado com manchas circulares mais escuras e com umas estranhas asas, muito pequenas para tanta cobra, que lhe saíam do corpo um metro abaixo da sua imensa cabeça. Os olhos possuíam aquele azul inexpressivo e um risco vertical negro desenhado bem no centro de cada vista.

Mariazinha não se atrevia a pronunciar um ruído que fosse. Estava bem longe de imaginar que do meio daquela desmedida tempestade saísse este encontro tão bizarro e surreal.

A cobra permaneceu mais uns instantes sossegada, a olhar para o rosto assustado de Mariazinha. Procurava entender como tinham sido recebidas as suas ordens pelo chefe Yatughuman. Tinha sido clara nas instruções que lhe transmitira.

Queria também perceber qual era o tamanho da coragem de Maria. Nenhuma das anteriores meninas tinha sido capaz de aguentar a sua presença sem fugas apavoradas, sem gritos ou desmaios descabidos, sem a normal aflição que a sua entrada em cena sempre proporciona. Mariazinha conseguia manter a compostura do silêncio, a sensatez da atenção e a nobreza de carácter, pese embora o pequeno tombo que deu ao perceber tão perto dela e sem aviso, a gigantesca cabeça branca do animal.

Mariazinha não conseguia desviar o seu olhar dos olhos da anaconda.

Era um sonho, só podia ser um sonho.

Um animal destes não pode existir.

Não precisa de sentir medo porque estas coisas estranhas só acontecem em sonhos e como toda a gente sabe, todos os sonhos terminam quando acordamos e a maior parte desses sonhos nem sequer nos conseguem encontrar.

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