34 - ALUCINAÇÃO


Na caminhada de Serafim desceu um tardio momento em que as cores se fundiram num tom cinza azulado muito carregado. Percebia com dificuldade as imagens que o rodeavam. A neblina que lhe vestia o olhar mantinha-se pálida e desfocada, servia-lhe o tempo em forma de estranheza, sem lógica nem sabor. A mão direita segredava em surdina os delírios que lhe pintavam a dor.

O avô Xavier voltou a desenhar-lhe o rosto na lembrança. Olhava para o chão, parecia querer dizer-lhe qualquer coisa que não conseguia entender naquele momento.

Teresa sentiu o movimento trémulo que a mão de Serafim realizava no meio da sua. Primeiro fraco, depois a crescer de intensidade, até que um puxão a arrastou até junto ao rosto do marido que lhe fez um pedido.

- O avô Xavier não pára de olhar para o chão! Está aflito, parece que os olhos lhe vão saltar das órbitas com tanto nervosismo. Será possível? O que terá o chão para o pôr assim tão transtornado? Não consigo vê-lo nestes preparos! Por favor, procura por aí se nele se escondem perigos ou se carrega algum mistério que possa estar a fornecer este medo a Xavier.

Teresa sobressaltou-se com a vivacidade confundida do marido. A magia daquele despertar causou-lhe contentamento, mas a dimensão da sua desorientação forneceu-lhe inquietude.

- Acalma-te Serafim! Tens de manter-te sossegado. É a febre a falar por ti. Tudo isso que estás para aí a dizer não faz qualquer sentido. Estiveste desmaiado tempo demais, a testa a ferver descontrolada, o corpo dorido da queda e os pés feridos. É bem possível que alguma maleita tropical tenha tomado conta dos teus sentidos. Tens de te acalmar. Tenta manter este tecido húmido na tua cabeça.

O índio Yatughuman não chega.

As crianças tinham sido acordadas pela aurora tropical. A imensa carga de água continuava inclemente a descer dos céus. Montaram uma espécie de guarda de honra à volta da cabana do chefe que se colocou no centro da enorme praça da aldeia. Aguardava serenamente pelas divinas instruções de Quetzacoatl.

Foi uma surpresa imensa quando a grande cobra alada lhe apareceu vinda do topo do Mundo, sempre anunciada pela tempestade por onde viaja. Deu conta da corda esquecida no meio da penumbra da cabana e invadiu o espaço com uma rapidez surpreendente. Abocanhou o objecto com perícia, abandonou o lugar com a mesma velocidade com que nele entrara e parou a poucos metros de Yatughuman, com o corpo bem levantado no ar. Aparentava ter mais de uma dúzia de metros de altura. Dançou à sua volta como fizera quando ele ainda era menino. Tal como então o ar valente e corajoso de Yatughuman continua a habitar o seu rosto. A grande cobra alada percebeu que no rapaz morava uma nobreza rara das que só muito dificilmente se encontram ao longo dos tempos.

Os meninos que se colocaram ao redor da casa do chefe aprenderam com Yatughuman a controlar o imenso medo que Quetzacoatl lhes provoca. Encaminham os seus olhares receosos para o centro dos seus corações e levantam os braços em sinal de respeito e veneração.

A grande anaconda abriu a boca e deixou cair aos pés de Yatughuman a corda que tinha retirado do interior da cabana, a mesma que Serafim tinha largado ao receber o abraço carinhoso de Teresa. Rodopiou o gigantesco corpo esguio pelos ombros desnudados e encharcados do chefe tribal e segredou-lhe as seguintes palavras ao ouvido:

- Apanha essa corda que aqui te entrego e transporta-a com todo o cuidado ao dono que a largou. Tem de ser repensada a primeira tentativa de abandono. As regras dos deuses não foram correctamente seguidas. A arquitectura das circunstâncias voltará a ser redesenhada e o vosso convidado terá de voltar a ser colocado na estrada que abandonou. Serve-lhe a bebida sagrada e devolve-lhe esta esperança. Anda, faz tudo aquilo que te digo, continua a fazer o teu trabalho como tão bem tens vindo a praticar. Sabes que Quetzacuatl sempre vos protegerá se continuarem a traçar este caminho de humildade. O reconhecimento vale por tudo e a verdade é todo o conhecimento!

A tempestade que serve de estrada à grande cobra começou a abrandar. Yatughuman não esperou tempo nenhum. Antes que esta abalasse, entrou com a bebida e a corda para dentro dos seus aposentos e foi-se sentar junto a Teresa e a Serafim.

- A menina Mariazinha apareceu minha senhora! A menina Mariazinha vem a chegar pela mão da senhora Berenice, minha senhora! Depressa senhora Valquíria, senhor Sebastião, venham cá abaixo dar conta desta maravilhosa notícia!

Foi nestes felizes propósitos que Emília espalhou por toda a casa aquilo que os seus olhos viam. As duas irmãs tinham subido até ao quarto da noiva para dar algum descanso às lágrimas. Nem queriam acreditar quando ouviram aqueles gritos de contentamento.

Joana ficou sem voz. Valquíria transformou aqueles dois segundos em estátuas de fraqueza. Em passo apressado, Sebastião saltou duas a duas as escadas até chegar à porta de entrada da moradia, passou por Emília como um louco, correu os poucos metros que faltavam desde a porta da casa até à filha sem se lembrar e abraçou-a com tanta vontade que seguramente o ar lhes faltou por uns instantes.

O Luís mantinha a cara colada à janela do quarto da tia. Olhava o tio e a prima que bailavam num rodopio descontrolado lá em baixo perto da entrada. O seu coração de menino gigante já podia voltar a pintar o sangue da cor que gosta, já podia voltar a respirar com alívio o ar perfumado que condimenta aquele dia de casamento dos tios. A querida prima Mariazinha voltou sã e salva da missão que se tinha proposto enfrentar.

Yatughuman levantou ligeiramente a cabeça febril de Serafim. Serviu-lhe delicadamente uma bebida fresca e muito amarga preparada com os misteriosos e revigorantes verdes da floresta. O rosto de Serafim disso mesmo ia dando reflexo.

Antes de os voltar a deixar a sós, o índio abriu a mão direita do enfermo com muito cuidado, com tanto cuidado que Teresa mal se apercebeu do que se estava a passar. Colocou a corda abandonada na mão de Serafim e fechou-a com firmeza, sempre com os olhos a olharem fixamente na sua direcção.

O avô Xavier ficou muito mais tranquilo após este resgate e o sorriso delicado do idoso voltou-se a iluminar nas memórias de Serafim.

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