30 - NÉVOA


Um falso sentimento de segurança encontrou o coração descompensado de Valquíria. A descoberta de Luís teve o dom de lhe proporcionar uma pequena sensação de esperança. Uma sensação morna apaziguou-lhe os receios que a pele de galinha deixava transparecer.

Agarrou-se a Sebastião com muita força, marcando-lhe a motivação nas costas da mão com marcas profundas, desenhadas pelas suas bonitas unhas impecavelmente tratadas.

- O nosso bebé adora jogar às escondidas, Sebastião! Sempre teve este hábito enervante de se fazer desaparecer! As bonecas estavam impecáveis. Vais ver que a nossa Maria está apenas a jogar mais um dos seus apetitosos joguinhos de escondidas. E toda esta história do voo dos pais para longe lhe deve ter provocado alteração e nervosismo, como a todos nós afinal.

O rosto de Sebastião ficou mais descansado. A noiva não estava tão nervosa como a tinha encontrado há momentos, junto de Joana.

- Esse é o espírito a manter. Esperança, muita esperança que tudo isto se venha a resolver o mais rapidamente possível.

Joana voltou a sua atenção para o sobrinho que se mantinha muito quieto junto dos tios a aguardar por alguma novidade, alguma notícia que também a ele lhe limpasse o cadastro da culpabilidade.

- E tu estás de parabéns Luís! Foste um bravo menino ao ter dado conta das bonecas da prima Mariazinha.

Não, ainda não eram aquelas palavras que lhe iriam permitir algum sossego. Não conseguia parar de pensar na força e convicção colocada no pedido feito à prima. Se aguardasse apenas pelo regresso dos avós, se tivesse tido um pouco mais de paciência, certamente que Mariazinha estaria ali com a família a aguardar o desenrolar destes acontecimentos. Não estaria agora também desaparecida desta boda atribulada.

Do céu não se fazia adivinhar solução para o problema.

O tapete relvado continua misteriosamente desaparecido do lugar onde pertence.

Joana sugeriu que voltassem para dentro de casa. Descansar, talvez comer um pouco até não fosse uma ideia muito disparatada.

- O Luís Miguel precisa de comer alguma coisa, está desde o princípio da manhã sem levar nada ao estômago. Até a nós nos irá saber bem comer algo, mais não seja para desviarmos a atenção de tudo isto por alguns instantes.

Os convidados nem sabiam bem o que fazer, o que dizer. O estado de inquietude e ansiedade permanecia como uma névoa invisível a pairar nesta boda.

- Mamã, não estou com muita fome! Achas que os senhores polícias vão tratar bem as bonecas da Mariazinha? Tu sabes bem como ela gosta delas mais do que de qualquer outro brinquedo, não é verdade Tia Valquíria? Ela adora a Nana e a Marafona. Por isso é que eu acho muito estranho que ela as te…

Joana interrompeu o Luís com um pequeno puxão no braço. Fez-lhe sinal de silêncio com o indicador direito bem levantado na frente dos lábios rosa brilhante.

- Uma sopinha de espargos Luís Miguel! Vais ver como a sopinha de espargos de madame Berenice é tão deliciosa como todos dizem ser. Vamos provar e comer um pouco desse manjar.

Sebastião resolveu acalmar o sobrinho pegando-lhe ao colo e depois colocando-o às suas costas como um cavaleiro, por um breve instante.

- Eu também quero provar dessa maravilhosa sopa de espargos. O que te parece Luís? Vamos ver qual dos dois consegue ser o primeiro a acabar de comer a sopa. Vamos fazer como nos bons velhos tempos da bochechinha suja. Eu acertava na tua boquinha e tu acertavas na tua bochechinha.

Valquíria e Joana esboçaram um sorriso ao recordarem os minutos gastos por Sebastião a dar as primeiras colheres de papa ao sobrinho. Não passaram assim tantos anos, mas parecia que tinha sido só no dia anterior. Mariazinha divertia-se com as tentativas falhadas do primo ao levar a comida à boca. As mãos acabavam por fazer de talher e a comida acertava mais vezes nas faces rosadas do que na sua boca pequenina. E ria-se com um riso dobrado que ecoava e contagiava todos os que assistiam às refeições.

Deram ordem para que as mesas fossem ocupadas pelos convidados que davam apoio e alento com a força da sua presença e com palavras solidárias.

*

Teresa acordou sobressaltada com o barulho violentíssimo do último trovão que acompanhou um imenso clarão que rasgou os céus e que acabara de se fazer escutar como uma bomba. Levantou-se e procurou imediatamente por Maria.

As senhoras índias mantinham-se silenciosas, deitadas mas acordadas. As ordens que lhes tinham sido dadas não lhes permitiam o descanso. Deveriam manter-se alerta para proporcionarem às visitas a atenção e as mordomias necessárias.

Encontravam-se mudas de medo. Deitaram-se anichadas, petrificadas com a visão que lhes foi oferecida quando o enorme réptil lhes invadiu os aposentos sem avisar.

Maria não foi descoberta por Teresa na cama de rede, nem nos tapetes que vestiam o chão da residência, nem junto à entrada da cabana, nem em nenhum local dentro ou fora da habitação. Correu feita louca procurando Maria. Agitou as mulheres que permaneciam totalmente petrificadas, gritando feita louca pelo nome da neta que continuava desaparecida. A água continuava a cair severa. Os raios iluminavam o céu, riscando-lhe imensas veias brancas luminosas, agitando o vento as copas de milhares de árvores, assustando-a cada vez mais.

Teresa continuou numa desenfreada correria pela aldeia fora, encharcada até aos ossos. Entrou em todas as cabanas que se encontravam próximas da sua, até que uma muito especial lhe chamou a atenção. Era a cabana de Yatughuman, o chefe da aldeia. Dois guardas, um de cada lado da entrada, faziam uma guarda de honra ao lugar. Teresa passou por eles com a rapidez de um trovão e acabou derrotada pela surpresa quando viu o seu Serafim, desnudado, apoiado no corpo do índio que o auxiliava na procura de assento.

Caiu ajoelhada à entrada da cabana de Yatughuman de braços prostrados, totalmente vencida pelo desenrolar dos acontecimentos. Mas afinal de contas, o que significa tudo isto que está a acontecer à sua família?

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