35 - DESASSOSSEGO


Não existe forma de raciocínio que saiba aguardar com a devida serenidade o resultado da batalha travada entre a vida e a morte, entre o ir ou o ficar. E abrigar o silêncio desta energia sem o peso da tomada de decisão, seria muito mais tranquilo.

Não é uma febre tropical que ataca o corpo e a alma de Serafim. Traduzir em certeza a sua vontade, com as ajudas das estranhas pistas que têm vindo a ser introduzidas neste recomeço, tem-se revelado muito complicado.

O corpo reduzido a recordação. As imagens parecem ser as de um sonho quando abandonamos o corpo e pairamos por sobre o cenário da acção. Serafim vê-se lá em baixo deitado, com Teresa a acompanhar o destino que falta traçar. E ele que não a seguiu de imediato quando saltou sem receios para o centro da escuridão. Abismo imenso ficou desenhado no pensamento. Teresa nunca o abandonou. Sempre, como um farol de sabedoria, a marcar bem forte as rotas e os caminhos seguidos a dois.

Decifrar os sinais, ler e interpretar toda a dimensão desta realidade paralela como um sufocante apertão na garganta, rouba-lhe o ar que ainda respira.

Consegue desta forma avançar invisível por entre os espaços e as acções, como um fantasma, imaterial e sedoso. Vai pairando, voando, desaparecendo e aparecendo novamente com os critérios transmitidos pela vontade. Após os primeiros instantes de prazer retirados desta novidade, fecham-se as moléculas que o prendem à vida e já não se existe ali em baixo, só vive nos outros através das lembranças, imagens e de todos os bons e maus momentos que lhes soube desenhar.

As mãos agarram com toda a violência o pescoço, que lhe ardia como uma tocha. Faltava-lhe o ar. Colocou os dedos da mão direita unidos como uma seta e avançou com eles assim esticados pela boca dentro, tentando encontrar espaço na garganta para que o ar pudesse voltar a circular. Levantou-se como um louco, com um forte ataque de tosse que lhe transformou o rosto decorando-o com um vermelhão assustador.

Conseguia manter com dificuldade a corda que Yatughuman lhe devolvera, quase em segredo, agarrada na mão que amansava o pescoço. A necessidade em respirar fê-lo saltar daquele descanso.

Transportou-se como pôde até á entrada da cabana.

A chave do desvio daquela dor estava escondida algures na humidade temperada da alvorada. Os meninos índios que se mantiveram ao redor da cabana avançaram de imediato até Serafim, levantaram-no no ar como se fosse um pequeno pássaro perdido e mantiveram-no assim suspenso por breves instantes. A tosse continuava a tomar conta de Serafim com violência, e o corpo despido a aguardar salvação.

Quetzacoatl desceu dos céus com Yatughuman às costas. A força com que voou na direcção de Serafim construiu em Teresa um grito do tamanho do infinito, tão forte e tão prolongado que a voz se findou ao terminar o desespero.

Os meninos permaneceram sossegados o tempo suficiente para que a grande anaconda soprasse directamente para os pulmões de Serafim o oxigénio necessário para a sua sobrevivência. Durou o curto espaço de um segundo.

Tão depressa como desceram dos céus, para lá se fizeram transportar.

Teresa, de voz perdida, viu o marido voltar à vida com um cansaço demolidor.

Os meninos colocaram Serafim com todo o cuidado de volta ao chão. O peito ardia com a violência do bálsamo aplicado e pela aflição sentida em tamanho desassossego.

Serafim percebeu desta maneira tão dura que não podia largar a corda enquanto a luz da decisão não se iluminasse no centro do seu desassossego.

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