32 - CORAGEM


A vista que se tinha lá do alto mostrava a selva amazónica em todo o seu esplendor. A cobra serpenteava pelo céu vagarosamente. Queria mostrar a Mariazinha a dimensão daquele oceano de verde que se estendia como uma manta por baixo de si.

Não se conseguia perceber onde estava escondida a aldeia dos meninos índios de Yatughuman. Tudo parecia um pequeno brinquedo visto assim de tão alto. O rio marcava a paisagem como se fosse uma cobra escura a marchar no centro da floresta.

- Grande cobra branca, não tenho medo de ti, mas uma coisa é certa, a avó vai ficar admirada quando perceber a minha falta.

Mariazinha mantinha-se estranhamente agarrada ao corpo do réptil como se uma cola mágica a tivesse colado ao animal. O mundo visto de cima fica parecido com as imagens dos livros que o pai Sebastião lhe lê antes de dormir. A frescura do ar àquela altitude não saía das páginas coloridas desses livros. Em nenhum dos seus sonhos mais fantasiosos tinha imaginado ser possível voar desta maneira, a cavalo numa gigantesca anaconda alada, serpenteando veloz por cima das nuvens da tempestade.

- És uma menina muito corajosa! Já passou tanto tempo desde que transportei alguém nas minhas costas, desde que um ser humano conseguiu vencer os medos provocados pela minha figura. E, mais uma vez, como dessa outra, foi uma criança que conseguiu vencer esses pavores e olhar para mim sem desconfiança.

Mariazinha não estranhou que a cobra voadora pudesse comunicar consigo desta forma tão pouco comum. As palavras da grande Sucuri, escutava-as dentro da sua cabeça e só aí se faziam entender.

- Os avós perderam-se do casamento dos meus pais. Ficámos todos muito admirados quando saíram montados num pequeno pedaço de relva verde que levantou voo com os dois em cima, mais o carro preto que o avô tinha mandado arranjar. O primo Luís ficou tão assustado que me pediu para resolver este mistério. Ele adora os avós e só de imaginar que alguma coisa lhes possa acontecer, fica logo aflito.

A anaconda mantinha-se atenta às palavras de Maria. Voava agora mais lentamente do que no início da subida até aos céus que cobriam a grande floresta tropical. Era necessário percorrer aquele caminhos para dar a conhecer a Maria o que tinha para lhe dizer.

- Não vale a pena estar a tentar adiar a notícia que tenho para te dar. O teu avô encontra-se muito doente. Encontra-se muito indeciso no caminho que tem para escolher. É muito importante para ele sentir que tu estás do seu lado a ajudá-lo no caminho, a iluminar parte das suas mais belas memórias, aquelas cujo peso poderá ajudar na decisão final que terá de tomar. O teu avô está perante uma decisão que o poderá transportar para o outro lado do tempo. É um processo muito complicado, tanto mais que a surpresa desta novidade caiu sobre ele sem participação. Os estranhos acontecimentos que todos vocês têm vindo a experienciar são moldados pelos senhores do tempo, da água, dos ventos e das memórias que se encontram guardadas nas arcas secretas de Serafim. É importante que a tua avó Teresa se mantenha tranquila ao lado dele neste momento. As instruções deixadas a Yatughuman foram muito claras. O teu avô tem tudo aquilo que é necessário para que possa escolher o seu caminho com o sossego e a reflexão necessárias. Não é a todos que é dada esta possibilidade. Era apenas isto que tinha para te dizer.

A menina escutou com perplexidade aquelas palavras. Ficou admirada ao saber que os avós estavam novamente juntos. Aquilo que tinha para fazer, conseguiu concretizá-lo com mestria e muita coragem, muito para além do que a sua tenra idade poderia fazer suspeitar.

Percebeu que a anaconda a transportava por paisagens bem mais conhecidas. Já não sentia tanto frio pelo corpo á medida que o animal ia descendo dos céus. O seu coração de menina valente desejava que o réptil voador a levasse de volta á aldeia índia, mas neste momento pressentia que era mais útil se ficasse à distância amiga de um segredo bem guardado.

Despediram-se sem mais palavras após a suave aterragem. Os olhos certeiros de Mariazinha deixaram transparecer a vontade que carregava nela de fazer tudo o que fosse necessário para manter a família unida. Cresciam nela muitas questões. É tão nova e não deseja cometer erros que possam comprometer a escolha do avô. O Luís Miguel, especialmente o seu querido primo, nunca lho perdoaria!

Abriu delicadamente a pequena porta do porta-bagagem do carro do pai, esgueirando-se do seu interior para o chão da garagem e daí em direcção ao local da boda sem mais demoras.

Os pais e o primo Luís devem estar preocupados e já vai sendo tempo de os acalmar.

.

Comentários