38 - VERMELHO


Mariazinha tem agarrado na parte detrás do vestido uma pena branca muito brilhante que não aparenta pertencer a nenhum dos animais aquáticos que habitam na propriedade dos Carvalho e Melo. Só o pequeno Luís deu conta do presente escondido. Com todo o cuidado e sem a prima perceber, retirou delicadamente o objecto e guardou-o imediatamente dentro do grande bolso traseiro das calças azuis que lhe iam apertando o estômago e fornecendo desconfortáveis picadelas nas pernas esguias.

A tia Valquíria e o tio Sebastião falavam baixinho com a prima Maria enquanto lhe limpavam o rosto e lhe ajeitavam o bonito penteado.

Nas entrelinhas esquecidas do tempo, algures numa indecifrável partícula do infinito, Serafim encontrou lembranças e memórias que tinham permanecido esquecidas bem longe da sua existência. Um sumo que se manteve secretamente adocicado para poder ser agora devidamente saboreado. Pedaços perdidos de diferentes momentos da sua existência. Partes de histórias há muito esquecidas por si. E um vermelho forte a toldar toda a lembrança.

As águas vermelhas tingiram Quetzacoatl. Vinha nadando, serpenteando veloz pelo fundo deste ensanguentado amazonas. Serafim aguardava a sua visita, sem o saber. A grande cobra tinha de enfeitar as ideias daquela alma serena que permanece estática no meio do rio. Os séculos passam por ali como segundos. Os segundos parecem-se com longas eternidades. É nesta confusa e desorientada anarquia temporal, toda ela criada para gáudio dos deuses, que acontecem estes encontros envolventes e misteriosos. Os caminhantes perdidos acabam por ser seleccionados através destes complexos procedimentos de salvação. São preparados e colocados com inusitada pontualidade divina na presença de quem lhes pode fornecer pistas, dar-lhes guarida, ou simplesmente manter esquecidos para todo o sempre naquele inócuo e perpétuo abandono.

Serafim não conseguia pensar. Os nós da sua corda protectora vão mantendo a sua existência a pairar etérea como um delicado fio.

Meio sonho agarrado em forma de esperança. A grande Sucuri avançou em direcção ao corpo abandonado, agarrou com a boca a corda de Serafim e arrastou-o pelo centro daquele denso vermelho como se fosse uma pequena folha de papel.

- Maria, Mariazinha, foi perigoso o teu passeio? Tantos segredos que tu deves trazer. Tens de me contar tudo ao almoço!

O Luís não conseguia manter a língua quieta. As perguntas eram mais que muitas e os tios nunca mais despachavam a conversa com a prima.

Joana recebeu um telefonema da esquadra da polícia. O inspector tinha sido informado da magnífica novidade e vinham já a caminho as amigas da sobrinha, conforme prometera ao filho Luís. Quanto a este estranho caso do desaparecimento momentâneo da sobrinha Maria, as coisas pareciam, por agora, resolvidas. Já quanto aos pais, esse silêncio amedrontado continua bem presente a pairar como uma nuvem escura por cima desta boda alvoroçada.

- Sim senhor inspector! A menina apareceu tão misteriosamente como tinha desaparecido. Continuamos a tentar perceber onde se terá escondido. A minha irmã e o meu cunhado ainda estão a conversar com ela para tentar encontrar alguma explicação para o sucedido, tal como nos tinha explicado. Claro, pois claro! É nestes primeiros momentos que tudo se deve tentar perceber.

Joana deu resposta rápida às questões sobre pequenos detalhes circunstanciais que lhe eram colocadas pelo senhor inspector. Por telefone melhor seria não se alongarem em grandes conversas sobre este assunto, tanto mais que já não demoraria muito a chegar ao local.

Quetzacoatl resistia à tentação de acordar Serafim da dormência que o engolira. Ainda havia muito rio para percorrer, muitos anos para deixar para trás, muita água avermelhada para nela se mergulharem os corações que tranquilamente iam avançando em direcção à foz do rio de sangue. A cobra tinha escolhido aquela alma e não uma outra alma qualquer. As dinâmicas misteriosas que estão por detrás destas escolhas, nem Quetzacoatl delas tem conhecimento.

A vida terrena de Serafim pode vir a beneficiar desta condição. Mas o tempo, esse vingativo e invisível personagem, pode muito bem estragar a força hercúlea destas duas vontades.

Yatughuman não podia fornecer o apoio que Teresa necessitava naquele momento. A avó perdeu grande parte da sua confiança. Agora, mais do que tudo, deseja conseguir manter as rédeas da serenidade controladas nas palmas das mãos. Tinha de o fazer para não deixar escancaradas de vez as portas da loucura.

Algumas das suas mais fortes barreiras começavam a dar indícios de fraqueza.

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