2 - VALQUÍRIA




Os desejos aparecem com a frequência inusitada com que a chuva cai sem se fazer esperar depois de belos dias de sol. As deliciosas paisagens de mar que Valquíria ia bebendo da janela do quarto, lá bem no alto da lindíssima água furtada a fazer lembrar as de estilo pombalino com que a fachada oeste da casa dos pais se alonga para o imenso Atlântico, trazem-lhe até ao colo milhares de recordações de infância. Noiva, nem dá conta do tempo neste dia que outras dizem ser o mais feliz de suas vidas. Para Valquíria, a lembrança do corpo acabado de nascer da sua bela princesa Maria, imediatamente colocado ainda tão quente e húmido junto ao seu, foi o maior marco da sua história de vida. Ser mãe pela primeira vez, apesar de tão nova e ingénua quanto os seus dezasseis anos deixaram acontecer, abriu-lhe as portas de dois Mundos novos, diferentes e totalmente desconhecidos logo após aquele mágico segundo. O da maternidade e o de uma estranha e imensa dor que lhe apertou com força o peito na sua liberdade de criança, aquela que o seu coração cantava dentro de si e que se deitou a dormir até mais tarde. Até que o sol de uma outra Valquíria lhe possa trazer toda essa vida de menina criança até aos dias em que esta, supostamente, deva transitar de forma ordeira e natural para o Mundo das adultas responsabilidades. Ali estava ela, passados quase dez anos, a voar nas doces lembranças, graciosa, na lombada dessa dezena de aniversários. O vestido não podia ser mais perfeito e apropriado para esta cerimónia de hoje. O tempo fez questão em ajudar e condimentar com ternura as recordações com a correcta temperatura luminosa das ideias. Lá em baixo sente-se a suave desordem musical das conversas desalinhadas que se vão pondo em dia.

Sente o chão a fugir debaixo dos pés, ou nem os sente por parecer que este nem sequer ali se encontra. Acabou mesmo agora de desaparecer ligeiro para bem longe dali, deixando Valquíria a pairar como pequeno colibri.

- Fecho os olhos e desejo aprender! Quero ser capaz de aprender com todas as forças do meu corpo. Não me deixar surpreender com os imprevistos solavancos do destino, ajudar a compreender os outros, ajudar a minha jovem Maria a aprender a ser feliz, ajudar Sebastião a manter o quente sopro da paixão que nos embala e nos dá forças para levar para a frente esta nossa história sem sobressaltos. Escutar, escutar muito o bater do coração dos outros para ir crescendo sem jamais ter que pedir desculpas.

Teresa tinha entrado no quarto sem que Valquíria tivesse dado conta. A forma como chamava à sua pequena menina coração de mel ainda hoje se encontra bem gravada na sua memória. Um imenso mundo de mulheres avança por esta família vai para oito gerações. A tranquila levitação daquele colibri apaixonado, com os braços abertos procurando equilíbrio, deu-lhe vontade de sorrir e não conseguiu evitar um ligeiro ruído desconcentrador, que logo fez virar o rosto iluminado da filha na sua direcção.

- Mamã!? Há quanto tempo está aí a observar-me? Linda figura esta minha, não acha? Devo estar com a cara toda borrada e ainda à bem pouco me retocaram a maquilhagem. Pareço uma tola, a chorar a cada minuto que passa. Gostava de saber se a mamã também se portou assim tão mal no dia do seu casamento com o papá.

O rosto feliz e tranquilo de Teresa acalmou de imediato o coração acelerado e descompassado de Valquíria. Nem precisou de responder àquele inesperado questionário que lhe tinha sido servido de presente. O rosto da mãe foi remédio suficiente, a par do quente e reconfortante abraço que veio em sua direcção, protector e tão intenso na força como lhe transmitiu toda a coragem do planeta.

- A mamã sempre teve este dom incrível de ser capaz de responder às minhas perguntas sem necessidade de verter uma única palavra. Quando for grande quero ser capaz de fazer sentir a Maria o mesmo que a mamã sempre me conseguiu transmitir.

Teresa colocou as mãos nas faces rosadas da filha, abriu o rosto com o sorriso sentido do seu coração e beijou-a com toda a ternura na testa.
- Estás linda! A mais linda princesa do Mundo. A minha pequena princesa coração de mel!


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Substituem-se todas as razões e as verdades caem por terra perante a cerimónia que todos irão testemunhar.
Passados os primeiros meses de vida de Maria, Teresa arregaçou corajosamente as mangas da coragem e vestiu de forma irrepreensível a condição de mãe, de mãe-avó e de grandiosa mulher de armas nos frescos anos que se seguiram. Sem qualquer impedimento que originasse alterações ao tamanho insensato do seu coração, deu ouvidos à sua profunda sabedoria e não hesitou em tomar o caminho que tantos tiveram a ousadia de criticar.
Valquíria era uma pequena criança adolescente, a sua princesa coração de mel. As paixões, já se sabe, surgem como ventos fortes que arrastam com velocidades incomensuráveis as certeiras setas de Cupido. Os sonhos e os castelos mais espantosos são construídos na imaginação dos frescos e inocentes anos dessa efémera juventude. Só quem nunca amou, só quem nunca viveu, passou incólume ao sabor inebriante e intenso que essa condição de alma desafia. Não existe um décimo de segundo de paixão que não mereça o risco insensato de um deslize, e a razão acaba sempre derrotada por falta de comparência e ausências repetidas até à exaustão. É um jogo viciado de origem.
Quantas vezes as nuvens se encarregam de transformar as ousadias desses doces pecados em histórias de vida que se transformam para todo o sempre. As identidades desses segredos amorosos ficam irremediavelmente incapacitadas de poder fazer germinar as bonitas flores dessas lembranças e o salgado choro acaba por encontrar novos leitos por onde se deixa embalar.
Teresa não deixou vingar as teorias de tantos profetas da desgraça tomando de imediato a atitude que o seu carácter decidiu em consciência e sem a mais pequena dúvida.
Sabe-lhe muitíssimo bem olhar para trás e perceber que os quase dez anos passados desde o primeiro forte choro de Maria até aquela face temperada com as escuras e humedecidas cores do rímel de Valquíria, a desenharem-lhe no rosto novos caminhos de felicidade, valeram-lhe por todas as dores que teve tantas vezes de beber às escondidas.

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