9 - CLARIVIDÊNCIA


O tapete relvado não parece ser capaz de transportar mais do que quatro ou cinco pessoas de cada vez. Os primeiros a experimentar um passeio terão de ser os noivos. Não cabe na cabeça de ninguém que as pessoas comecem agora a voar por aí fora montadas neste pedaço mágico de relva voadora.

Ao descer de forma suave bem por cima da clareira que tinha sido criada, o tapete de relva inclinou-se ligeiramente para permitir que os dois passageiros pudessem sair dele sem grande dificuldade. Mal sentiu os pés no chão, Horácio correu para bem longe dali, não fosse este resolver novamente levantar voo sem pedir licença.

Serafim permaneceu sentado por mais uns instantes, com os pés a tocar o chão e o resto do corpo sentado naquela forma circular esverdeada que se mantinha no ar, pairando a pouco mais de meio metro do solo. O relvado aguardava a sua decisão para depois tapar novamente o local de onde tinha resolvido subir céu arriba.

Todos os que ali se encontravam a admirar este estranhíssimo objecto voador permaneciam em silêncio e numa admiração profunda. Pareciam hipnotizados. A situação era de tal forma invulgar que Teresa manteve-se em silêncio a apreciar a suave descida da relva voadora. Mestre Horácio, o marido Serafim e o renovado cadillac reluzente tinham acabado de chegar do mais bizarro passeio de que havia memória. Não conseguia articular qualquer palavra. Um enorme silêncio de espantamento tomara conta de todos os convidados.

Serafim mantinha-se muito alegre e animado, sentia-se rejuvenescido em ideias e pensamentos, revigorado em forças e em coragem. A sua visão adquiriu novas capacidades de focalização a par de uma estranha clarividência, situação esta que lhe começou a causar alguma intranquilidade e até um certo nervossísmo.

Não sabia ao certo o que estava a sentir, a cabeça ficou um pouco pesada, as imagens ganharam contornos desfocados e alterados, o estômago começou a dar indicação de irrequietude. Talvez não fosse má ideia deitar-se por uns minutinhos, recuperar as forças nas pernas que tremiam imenso, não de medo mas por ausência de força. As imagens de todos os que se encontram ao seu redor, em especial a da sua esposa Teresa, pareciam agora descomunais. Tal e qual as imagens que as pequenas crianças têm do mundo dos adultos. Tal e qual. Todos os que o observam lhe parecem adultos gigantescos, sorridentes adultos gigantescos. As suas expressões, os seus olhares, transmitem-lhe um misto de solidariedade e pena. Pelo seu corpo vai sentindo intermitentes e ritmados calafrios. Uma vontade incontrolável em se colocar em posição fetal, protectora e temperada, carregou-lhe pesadamente os movimentos do corpo. Fechou os olhos muito lentamente, usou o tapete voador como colchão, transportou as pernas com alguma dificuldade para cima do relvado que ainda pairava por ali a aguardar informações concretas para poder decidir em conformidade. O seu corpo anichado, virado para o lado esquerdo, ficou frente a frente com a negra viatura que permanecia estática no centro do estranho círculo de relva.

Serafim fechou os olhos, esperançado que aqueles calafrios e aquela sensação de insegurança desaparecessem rapidamente do corpo. Apertava as mãos com força, com os dedos entrelaçados uns nos outros, uma oração esboçada na alma, que nestas estranhas alturas da vida a dimensão da nossa insignificante pequenez faz-se notar das mais extraordinárias maneiras.

O relvado começou novamente a movimentar-se, lentamente. Primeiro subiu cerca de um metro, depois rodou no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, duas voltas inteiras, até parar no ar a cerca de metro e meio do solo. Teresa não conseguiu evitar a força do seu instinto e trepou de forma rápida e muito segura para cima do tapete relvado.

Durante dois segundos o manto verde ali permaneceu até que, vertiginosamente, levantou voo em direcção aos céus onde desapareceu no curto espaço de um golpe de vista.

Teresa e Serafim desapareceram pelos ares numa velocidade indescritível em direcção ao Oeste, bem para lá da linha do horizonte. O mar e o céu desenharam um pequeno ponto luminoso, com a forma do estranho objecto voador, no local exacto em que este lhes tocou. A cerimónia acabara de ficar orfã dos pais da noiva.

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Valquíria continua envolvida nas tarefas de embelezamento. Aos cuidados finais com que lhe vão esculpindo retoques perfumados nos sedosos cabelos junta-se o enquadramento fotográfico, aprimorado em artísticas posses de modelo, para memória futura. Arrumadas estas exigentes tarefas, a surpresa da notícia com que lhe serviram a manhã de noivado rebentou como uma bomba. A princípio, julgou ser uma brincadeira de péssimo gosto. Quem sabe, teria aquela sonsa da Filipa Tavares sido estúpida o suficiente para tentar armar esta triste comédia. Bem capaz disso era ela! Tentar enervar a sua perfeita manhã com estas parvoíces de mulherzinha tola e invejosa. Foi Joana, a irmã mais velha de Valquíria, que acabou por semear nela a verdade mirabolante do que acabara de suceder.

- Valquíria, os pais acabaram de sair da festa montados num tapete voador feito de relva! Os pais acabaram de desaparecer, vertiginosamente, montados num tapete voador feito de relva e de terra em direcção ao oceano. Ninguém entende nada do que está a acontecer. Parece um bruxedo que alguém resolveu lançar na direcção da nossa família! E logo no dia do teu casamento! Um estranho e muito misterioso bruxedo!

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