1 - MANAUS


Este sonho de menina começara a crescer nela desde que descobrira as lembranças daquelas paisagens azuladas. Aquela imensidão azul não era deste Mundo! O céu sempre a chamar por si, a dizer-lhe que só nele se podem encontrar as respostas para todas as dúvidas que carrega.



Os bolinhos de amêndoa e arroz iam sendo colocados no centro da mesa com mestria e desembaraço profissional. Aqueles senhores não brincam em serviço.

As preocupações com todo o requinte e charme das mesas dos convidados carregavam de rugas de expressão a testa experiente de Madame Berenice. Passava repetidamente a mão direita pelo queixo, fazendo pequenas festas na parte superior esquerda do seu fino lábio com o dedo indicador. Depois usava-o para ir tocando compassadamente na ponta do nariz, aguardando as ideias que iam crescendo em si sobre estes assuntos de estéticas cerimoniosas, de embelezamento de espaços para reuniões e eventos irrepetíveis. As ordens eram depois distribuídas sem nenhuma hesitação. Ninguém ousava questionar ou alterar nenhuma das suas rigorosas instruções sobre estes assuntos delicados. Ela paira como uma sombra por detrás de qualquer cor, de qualquer escolha floral, de todo e qualquer pequeno detalhe que facilmente passa despercebido ao mais comum dos mortais. É essa a sua capacidade mágica. Entender a importância de todas as pequenas e grandes dimensões dos detalhes para as cerimónias destes dias fez de Madame Berenice a mais requisitada e conhecida organizadora de eventos de todo o País.

Mariazinha ia cheirando as pétalas de rosas que por vezes caíam das mesas cor de mel onde tinham sido depositadas com as secretas intenções da beleza. Não conhecia mais nenhuma menina como ela. Sentia-se o ser mais feliz do Mundo por poder assistir e participar no casamento dos seus pais. As amigas só através de fotografias podiam tentar perceber como se tinha passado o dia em que os pais se casaram. Não possuem dele nenhuma memória, nenhuma lembrança, cheiro ou recordação pessoal pois pura e simplesmente não existiam.

Estas imagens de preparações, as nervosas mas delicadas palavras da mãe que se tem docemente agitado com o passar das horas até a chegada deste dia, os abraços carinhosos do pai que em segredo foi consigo comprar uma prenda inesquecível para juntos lhe oferecerem no final do dia, o magnífico toque aveludado de todas as novas e perfumadas roupas que acabara de estrear para esta tão solene ocasião, os doces odores que vai sentindo no ar e que se misturam com a azáfama daquela artista rainha de secretas cerimónias de seu nome Madame Berenice, tudo isto jamais ninguém lhe irá apagar da memória, viva Maria os anos que vier a viver. E o céu lá estava a adornar todo este quadro com o mais perfeito de todos os azuis.

Talvez seja da emoção, talvez seja da vontade que este dia seja tão perfeito, tão longo e tão encantadoramente mágico que faça com que Mariazinha sinta perfeição em tudo o que vai mirando, tocando, cheirando e ouvindo. Quanto a tudo aquilo que lhe irá adoçar o paladar infantil, não lhe resta qualquer dúvida que o dia será doce, muito, muito doce e verdadeiramente sublime.

O mar bem perto trás do Oeste uma suave brisa salgada, o suficiente para temperar os bailados das brancas e etéreas tendas onde já se abrigam do sol alguns convidados. São logo presenteados com as primeiras cortesias por parte dos muitos serviçais e alguns mordomos prontamente enfileirados e ordenados pela voz sábia e organizadíssima de Madame Berenice.

Mariazinha tinha-se escondido por debaixo de uma das mesas da ala central, junto à entrada do restaurante que foi montado no imenso relvado do jardim, naquela falésia com vista para o oceano cor do céu. Era ali, escondida de tudo e de todos, que ia organizando as suas ideias de menina sortuda. Não quer que ninguém a encontre. Gosta imenso de desaparecer de todos, mas sempre a todos poder continuar a observar nestas suas brincadeiras com o invisível. Era o seu poder secreto. Desaparecer mas ter a extraordinária capacidade de escolher estrategicamente os locais onde se esconde para conseguir observar tudo aquilo que a rodeia. Sente-se poderosa e segura nesta sua arte de camuflagem. As bonecas que acompanham a visita de Mariazinha àquele esconderijo momentâneo falam com os olhos. Parecem querer dizer à amiga de tantas e tantas brincadeiras que tal como ela se sentem felizes com a felicidade da dona. Mariazinha tinha herdado a Nana e a Marafona da mãe, que lhas dera por ainda se encontrarem muito bem tratadas e com vontade de manter as brincadeiras de uma para a outra menina sem perderem a vontade de sonhar. Trazia-as bem apertadinhas junto a si, e sempre que espreitava pelos intervalos da toalha, que mantinha em segredo a localização daquele pequeno grupo de rebeldes, colocava junto à sua a cabeça da pequena Marafona para que os seus olhos pudessem também testemunhar as acções do filme que ali se vai produzindo e do qual também elas fazem parte.

Caminhando no meio do bem tratado relvado, os grupos agora mais numerosos de convidados conversam entre pequenas dentadas nas primeiras iguarias apetitosas que lhes iam sendo servidas com requinte. O primo Luís já começava a sentir-se meio perdido no meio de tantas pernas desatentas. A cabeça do rapazinho já dança a sondar possíveis esconderijos onde a prima pudesse estar abrigada, ocupada com o seu passatempo favorito. Se não conseguisse descobrir o seu esconderijo nos próximos cinco minutos, não era Luís não era nada.

Mariazinha sabia que o primo era perito em descobrir as suas localizações secretas. Olhou para as companheiras e segredou-lhes a especial situação em que se encontravam.

-E que tal idealizar um plano de fuga na busca de um esconderijo mais sensato? O Luís é capaz de nos descobrir aqui debaixo mal dê conta das mesas de convidados. As meninas sabem bem como ele parece adivinhar a minha mente quando me escondo das pessoas. Dá-lhe um prazer irritante estragar a minha tranquilidade, o chato do miúdo!

Luís continuava a inspeccionar todos os recantos, portas mais afastadas, o vão da escada que dava acesso ao piso principal da casa dos tios, e ousou até espreitar para dentro da garagem que tinha o enorme portão entreaberto. Estava escura mas muito arrumada. O espaço era enorme. Não era uma garagem como as outras que conhecia. Dava para guardar tantas e tantas coisas. Tinha uma grande quantidade de garrafas verdes e castanhas encostadas umas sobre as outras junto à parede que dava para o lado do jardim. Tinha três janelões, um em cada parede, muito lá no alto, que deixavam passar a luz suficiente para não se estar numa total escuridão. Os carros estavam estacionados lado a lado, junto à outra parede lá ao fundo. O Luís gostava muito daquele carro do tio Sebastião. Muitas vezes, tal como hoje, o tio não lhe coloca a capota e basta saltar lá para dentro para ter o prazer de fazer de conta que se está a conduzir por essas estradas fora como um adulto, já com carta de condução e tudo. É muito bonito o volante antigo todo em madeira, e o barulho forte e simpático que faz o pisca e a alavanca das velocidades.

- BRUUUUMMMMMMM, BRUUUMMMMM, ….., cá vou eu bem depressa a caminho da Índia, ou do Japão, não, não, Brasil assim é que é! Hoje vou visitar as imensas florestas da Amazónia no carro verde do tio Sebastião!!! BRRRRRRRUUUUMMMM, BRUUUUUUMMMM…

A cabeça do Luís já tinha esquecido a primeira intenção com que tinha chegado até ali. Ver onde se encontrava escondida a prima Mariazinha era uma coisa do passado. As verdejantes paisagens da Amazónia estavam agora por todo o lado para onde olhasse, desde que saiu de Manaus em direcção ao norte por estradas quase desconhecidas. Mesmo que essas estradas possam tornar-se complicadas para os normais veículos de quatro rodas, o espantoso descapotável do tio Sebastião tem centenas de botões e milhares de engrenagens especiais que resolvem quase todos os problemas que possam vir a surgir pelo caminho. Todo menos um… a falta de gasolina!

O rapazinho estava a ficar desesperado. Como era seu hábito, nunca dava grande importância ao indicador de nível de combustível que se encontra bem no centro do painel de bordo do automóvel. Agora, com tanto caminho já percorrido e já quase no coração da densa floresta amazónica, o carro dá sinal de falta de combustível. Nenhuma bomba num raio de muitos quilómetros e a reserva a chegar ao fim. Já se começava a adivinhar a noitinha e o desespero foi ainda maior quando o espantoso descapotável acabou por parar no meio daquela imensidão de verde até perder de vista por falta de carburante.

- Bolas, é sempre a mesma coisa! Agora estou aqui parado no meio desta selva gigantesca e sem ter como sair daqui! Como vou fazer para voltar até Manaus?

Sem que nada o fizesse adivinhar, do banco de trás do automóvel sentiram-se barulhos de objectos a cair, o que levou com que o Luís apanhasse um enorme susto. Olhou rápida e instintivamente na procura de cobras venenosas ou alguma tarântula gigantesca que tivesse tombado do alto de uma daquelas enormes copas de árvores tropicais mas nada disso se encontrava ali atrás no banco. Nada que se parecesse sequer remotamente com algum perigoso animal venenoso.

- BUUUUUUUU!!!!!! Eu sou a rainha da floresta!!! – Gritou Mariazinha bem alto saltando de repente por detrás da porta direita do descapotável.

- O que está tu para aí a fazer especado a olhar para as minhas duas amigas? Não me digas que nunca viste uma missão de salvamento composta por três senhoras? Porque não continuaste à minha procura, Luís Miguel? Gostas mais de vir brincar para aqui para a garagem do que tentares encontrar os meus esconderijos secretos, é? Vou dizer ao Papá que não vai ficar nada contente quando souber que tu voltaste a mexer no carro dele!

O rapaz ainda estava atordoado com tantas emoções e acontecimentos repentinos que ficou por alguns instantes sem dizer uma única palavra.

- O que se passa Luís? O gato comeu-te a língua, foi? Anda vamos embora daqui de volta até Manaus, está a ficar tarde e pelo aspecto do céu não tarda muito vai cair uma daquelas chuvadas tropicais que duram dias e dias sem parar.

Depois de atestado o depósito com a gasolina que a prima Maria a Nana e a Matrafona trouxeram sabe-se lá de onde, voltaram até Manaus onde chegaram já madrugada dentro. A noite fez com a paisagem da floresta Amazónica se transformasse em escuros e assustadores vultos que assustaram mais Maria do que o valente e esquecido primo Luís. As amigas que seguiam no banco detrás agarraram-se muito agarradinhas para conseguirem combater o medo que lhes ia provocando a escuridão da paisagem.

- Pronto meninas! Já chegámos ao fim desta viagem! É um bocadinho tarde, mas o que interessa é que esta aventura não acabou mal graças à vossa inestimável ajuda. Muito obrigado!

Maria abriu a porta do carro, saiu, tirou as amigas da segurança do banco detrás, fechou a porta e fez sinal com a mão ao primo Luís:

- Anda, vamos sair daqui. Os papás já devem andar preocupados à nossa procura! Temos um dia importante demais pela frente. Não há tempo para mais passeios de aventuras enquanto o casamento não se realizar.

O primo Luís ficava sempre muito admirado com esta grande virtude que a prima Maria possuía. Tão depressa se fazia transportar para o Mundo imaginário e fantasioso das suas criativas brincadeiras, como rapidamente abria a porta que lhe dava de novo acesso aos acontecimentos da vida real. Como se um e o outro não possuíssem diferença alguma!

-Acho que estou a ficar apaixonado! – Pensou o rapazinho ao ver a prima esgueirar-se como borboleta colorida pelo portão entreaberto da garagem em direcção ao exterior.

O casamento devia estar mesmo quase a começar…

*

Um Cadillac bem antigo que o avô Serafim tinha mandado vir dos Estados Unidos em meados dos anos cinquenta servirá de carruagem para o passeio que os pais de Maria irão dar antes de partirem em lua de mel para África. Esteve quase um mês inteirinho na oficina do senhor Horácio apesar de já não trabalhar como mecânico há mais de sete anos. Mas quando lhe aparecem relíquias destas pela frente, como este automóvel do avô Serafim, custa-lhe imenso ter de recusar amaciar-lhe as válvulas e os carburadores ou afinar-lhes o doce metralhar dos cilindros e pistons. São como bolinhos doces que gosta de saborear sem pressas. Quando assim é, os dias passados a dar vida e novo fôlego ao coração destas maravilhas da engenharia automóvel passam rápidos e alegres. Sente-se novamente aquele pequeno rapazinho das alegres brincadeiras de infância, quando se colocava tardes a fio a ver passar as viaturas na rua pelas vidraças da janela da cozinha e a jurar a ele próprio nunca falhar uma só marca que fosse. Desejava que a sua profissão fosse médico de automóveis. Quando os desejos são assim sentidos tão intensos em idades tão precoces, algo nos faz acreditar que o destino, afinal, tem mesmo as suas páginas escritas. É é ver agora a cara feliz de mestre Horácio a embalar o volante da viatura com um prazer tão jovial como o da luz emanada do seu refinado bigode grisalho e que ilumina lá ao longe o cockpit da viatura.

Muitos dos convidados não conseguiram evitar saudar a chegada da carruagem com fortes aplausos de espanto e contentamento. Vinha como novo e o robusto som do trabalhar daquele motor cumprimentava todos os presentes agradecendo as palmas recebidas, todas por inteiro dirigidas e merecidas por mestre Horácio pelo seu esplêndido trabalho de restauro.

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