11 - TRINCHEIRAS


Acreditas que o Céu existe? Eu sei que nada disto está correcto, nada disto é aquilo que parece. Consegues ver alguma coisa? Não consigo ficar aqui quieta a ver-te neste estado! Devias ter-me dito a verdade, não devias ter decidido as coisas todas sózinho. Nem penses ir-te embora agora que estamos tão juntos. Fizemos um juramento sagrado, Serafim. És tu que me seguras a mão quando as coisas não correm bem, és tu que me orientas. Não tenho coragem para te deixar, nem sequer consigo arranjar forças para pensar nisso neste momento, quanto mais deixar de te sentir, ou de te cheirar. Sinto a tua pele na minha mão, o teu cabelo nos meus dedos, o calor do teu corpo junto ao meu. Mantém-te vivo! Quero-te vivo, estás-me a ouvir? Os milagres acontecem todos os dias. Olha para nós Serafim, chegámos até tão longe e nada disto é aquilo que parece meu amor, nada disto é aquilo que parece! Não quero fechar os olhos, não quero que tu te vás! Eu preciso deste nosso milagre para continuar a ver a vida das nossas meninas a seguir em frente. Tu és o meu Céu e eu escolho a vida que temos tido lado a lado. Diz-me que vais acordar desse teu sono, Serafim. Eu não quero morrer! Não me digas que o cheiro da nossa morte tem este intenso perfume a cabedal e a lágrimas salgadas. Já não me compreendo. Não sou pessoa para ver ou dar atenção a coisas estranhas. Como posso deixar de ver e sentir esta realidade em que estamos e que não faz qualquer sentido? Presos neste carro restaurado, com cheiro a novo, a voar para o desconhecido num pedaço de relva do nosso próprio jardim. Antes restaurássemos as nossas vidas! Mas o que é que estou eu para aqui a pensar? A vida tem-se portado bem connosco, como se nos conhecesse perfeitamente, e tem gostado de nós ao ponto de nos fazer apaixonar por ela.

Terá sentido deixar as sombras destes receios pairarem com esta intensidade sobre nós, e logo neste dia? O passado surge transparente e célere aos nossos olhos. Olha como o mundo se transformou neste tão curto espaço de tempo. As nossas vidas avançaram tanto em idade e tão depressa que nem demos conta da rapidez com que nos foi levando a juventude, e com ela parte da nossa alma e da nossa felicidade.

Já se perderam as esperanças em dar conta dos caminhos de dor de que se teria vestido a nossa vida se levássemos em frente a ideia de não deixar acontecer Maria. Esse erro não foi cumprido, não se comprometeu a esperança desse coração de sonho. As voltas e mais voltas que deste a pensar nessa solução e no seu não cumprimento, não fazem já parte das nossas discussões, só mesmo na tua cabeça continuam a fazer germinar sementes de arrependimento que já não fazem qualquer sentido. E agora, o que vamos nós fazer? Estamos para aqui fechados a viajar sem rumo nem destino marcado a não ser nas estranhas rotas deste tapete voador incompreensível.

O objecto continua a avançar pelo espaço sem aparente destino. A velocidade a que se desloca é extraordinária. Não se dá conta do passar do tempo, dir-se-ia mesmo que tinha estagnado. O tempo naquela viagem tinha-se desligado. Serafim e Teresa necessitavam daqueles instantes para que a coragem pudesse regressar aos seus cansados corpos. A viagem de suas vidas tem aberto feridas que nunca foram devidamente tratadas. As marcas desses momentos transformaram imenso a sua relação. Tem sido cada vez mais difícil encontrar formas para partilhar momentos em comum, como se as suas vidas tivessem construído uma imensa trincheira entre eles, na qual se abrigam e se escondem um do outro, no mesmo espaço, de costas voltadas, sem explicação!

Serafim está bem mais sereno. O descanso daquele colo rejuvenesceu-lhe as forças. Teresa percebe o ligeiro movimento do corpo do marido e avança pela sua cabeça em mais um afago de tranquilidade. Serafim, ainda deitado, passa a mão pela testa, esfrega ligeiramente as pálpebras fechadas, passa a mão pela face onde encontra a mão direita de Teresa que guarda na sua, carinhosamente. Aquela ligação foi directamente recebida no seu coração. Os encontros amorosos naqueles longínquos domingos de namoro permaneciam todos guardados naquele sentir. Os primeiros beijos roubados, intensos, resguardados de possíveis olhares indiscretos, protegidos pelas sombras sempre amigas do imenso pinhal junto à costa. Onde está agora essa terna juventude inocente? Estará só ali, quase esquecida em memórias arquivadas, tão fundo no seu coração?

- Teresa, minha querida, onde estamos? O que se passa, afinal, que mal te consigo ver?

Uma pequena lágrima, misto de ânsia e felicidade resvalou face abaixo como uma pequena fada brilhante. Teresa não deixou que ela caísse, limpando-a de imediato do seu rosto.

- Não sei Serafim! Tudo isto é muito estranho! Pela primeira vez na vida não percebo rigorosamente nada do que os meus olhos vêem ou do que o meu corpo sente! Estamos aqui enclausurados no teu cadillac, a voar sem destino como dois prisioneiros que desconhecem a sentença que lhes foi destinada.

Serafim recuperou forças suficientes para se conseguir sentar. A luz avermelhada do interior da viatura começou a ficar mais fraca. Os olhos conseguiam apenas perceber o vulto de Teresa, sentada à sua esquerda no banco de trás do automóvel. Abraçou-se à companheira com toda a vontade da amizade e do amor que sente por ela, e assim permaneceram unidos na momentânea eternidade daquele abraço de paixão.

.

Comentários