8 - VOAR



O tapete verde avança na direcção do local da boda. O curto passeio estava provavelmente a chegar ao fim e nada mais havia a fazer senão aguardar pela serena aterragem do objecto. Os convidados devem ter ficado completamente boquiabertos com o estranho acontecimento do afastamento voador do pai da noiva e de mestre Horácio do local da festa.

Teresa ficou transtornada com esta estranhíssima situação. Não queria acreditar em nada daquele disparate e julgou que estavam a brincar com coisas sérias quando lhe deram relato do sucedido! Mas quem teria sido o engraçadinho que se iria lembrar de uma tolice assim tão grande?

- Onde é que já se viu estarem a brincar assim desta maneira, e logo num dia tão importante como o de hoje? Francamente! Se Serafim julga que as suas habituais loucuras podem fazer alterar uma vírgula que seja aos planos para o casamento de Valquíria, está redondamente enganado.

O passo apressado e ritmado que se impôs até ao local onde, supostamente, a relva ganhou asas, foi corrida de breves instantes. E nem o facto de se ter deparado com a estranhíssima clareira redonda bem desenhada no solo lhe fez quebrar os instintos.

- Vejam lá ao ponto a que pode chegar o disparate. Ter mandado cortar a relva e estragar parte do relvado para brincar ao faz de conta. Mas que diabo! Não ganha juízo nenhum e com a idade parece estar a ficar cada vez pior!

Os convidados que assistiram ao sucedido permaneceram no local impávidos e incrédulos. Teresa olhou para eles e pensou que, desta feita, o marido tinha mesmo enlouquecido de vez. A maluquice tinha-o feito chegar ao ponto de contratar figurantes para simularem aquelas caras de espanto, eles, mais os primos do Brasil, a grande amiga Solange de Arriaga e o sempre delicado irmão Gonçalves, a Mimi de Vasconcelos, os Seabra de Castelo Branco, os Cunha de Mascarenhas, o padre Semide de Vila Chã, os Serafim Castela de Óbidos e os filhos. Não pode ser! Tantos a produzirem aquelas estranhas feições, misto de incredibilidade e espantamento, não é possível. Seria demasiado complicado, mesmo com toda a capacidade de improvisação e eficácia metodológica que reconhece a Serafim. Não acredita que ele se tivesse dado a um trabalho tão perfeito ao ponto de conseguir produzir em tão diferentes e distintas personagens sentimentos e expressões de espanto como as que estava a observar. E com que objectivos? Teresa começava a ficar verdadeiramente preocupada.

O irritante som das sirenes de bombeiros e de polícia que se escutam ao longe misturam-se com o ruído dos cavaleiros, com o ruído do constante vai e vem das crianças mais pequenas alheias a tudo isto, ocupadas nas suas barulhentas correrias e brincadeiras e com o ruído estridente dos netos Maria e Luís Miguel, a berrarem o seu nome ao longe, junto ao parapeito do alpendre que dá directamente para o jardim, a indicarem com os dedos o céu.

- Avó, avó, olhe! Já reparou ali no alto! Veja! O carro velho do avô Serafim está a voar junto daquelas nuvens branquinhas! Não é o máximo! É mesmo espectacular avó! Venha ver daqui que se vê melhor!

Teresa começava a pensar seriamente que teria enlouquecido de vez, ou então alguém colocou alguma coisa menos própria no refresco que tinha acabado de beber há poucos instantes. Nada disto faz o mais pequeno sentido. Mas que dia de loucos este, quando tudo estava a correr tão bem. Tamanha agitação e reboliço não constavam em nenhum dos programas previstos para a boda.

Lá no alto, bem próximo de uma das poucas nuvens que polvilham o céu como algodão doce, uma mancha verde e acastanhada serve de colchão a um bem conhecido cadillac negro. Vai descendo lentamente na direcção dos convidados, exactamente para o lugar onde o enorme buraco circular se encontra desenhado no chão do jardim.

Serafim e Horácio, de maneira ousada e quase irreflectida, encontram-se sentados na beirada desta jangada improvisada, com as pernas a balouçar do lado de fora, como pequenas crianças descontraídas, totalmente alheias ao perigo da sua atrevida acrobacia.

- Avó, veja! O avô Serafim está sentado ali na beirinha da relva a dizer-nos adeus. E está a voar com o senhor Horácio e o carro preto antigo em cima da relva voadora. É um verdadeiro espectáculo avó! Um espectáculo mesmo espectacular, não acha avó?

As palavras emocionadas e espantadas dos seus netos adornam este bizarro acontecimento com uma ainda maior pitada de estranheza. O que provoca em Teresa uma sensação de aflição é a sua total incapacidade em conseguir alterar qualquer destes acontecimentos, de tão confusos e incomuns que se apresentam, inclusivé à sua capacidade de compreensão. Se existe coisa que deteste é a de se sentir incapacitada em assumir e controlar as rédeas dos acontecimentos através da sua forte e tenaz capacidade de liderança.

E os que se vão ali desenrolando, bem na frente dos seus olhos, estão completamente fora da sua área de jurisdição. Parece que, subitamente, a casa onde sempre se sentiu segura decidira começar a desembrulhar presentes de noivado estranhamente envenenados, pela menos para a sua humilde capacidade de compreensão.

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