4 - SEBASTIÃO


Sebastião segura o penteado novo a estrear com um pequeno toque de gel em frente ao elegante espelho Veneziano do hall. Muitos foram os que por ele passaram os cumprimentos da praxe, os abraços, as palmadinhas nas costas, alguns olhares humedecidos de emoção. Todos estes pequenos instantes lhe iam parecendo uma película muito antiga com personagens desfocadas, com segundos que pareciam longas horas. Outros possuíam a dimensão de uma partícula de molécula de segundo. A vida a dois já vem sendo partilhada com Valquíria desde que Maria comemorou os quatro anos de idade. Nada lhe proporcionou tanta alegria no viver. A capacidade em resistir e ultrapassar todas as tormentas e furacões que alucinaram a sua adolescência, desde que foram abençoados com aquela paternidade tão precoce, é algo de que se sente verdadeiramente orgulhoso. Não tem muito tempo para pensar. Tantas solicitações, pequenos rituais, a noite mal dormida causada pelo natural nervosismo da ocasião, pelos pensamentos e imagens surgidos na sua cabeça vindos sabe-se lá de onde, pelos ruídos de alguns convidados que ficaram lá em casa provenientes dos quatro cantos do País e que iam aproveitando a oportunidade para falarem de tudo e de nada, mas principalmente pelo medo! O medo daquele desconhecido lugar. O medo de falhar, o medo de perder a capacidade em sentir o amor que agora sente por Valquíria, como se tal pudesse alguma vez vir a acontecer! O medo de tudo e de nada. Mas medo por quê? Medo de ter vontade de voltar a partir em busca de todas as viagens não realizadas. Medo da Filipa Tavares, que lhe anda sempre constantemente a atormentar as vontades. Medo de coisas completamente aparvalhadas, que o irritam por não conseguir desligar o interruptor de tanto pensamento disparatado.

Passos apressados de quem corre de maneira descontrolada fizeram-se ouvir com vigor e não tardaram em dar conta da sua autora acelerada.
- Papá, papá! O Luís Miguel estava outra vez na garagem a passear ao volante do MG. Já sabes que nestes dias em que ele cá vem não consegue resistir a brincar pendurado nos botões do carro.
Mariazinha mal acreditava no que os seus olhos viam. O pai estava igualzinho ao príncipe da história que andava a ler.

- Como estás tão elegante papá! Pareces mesmo um príncipe como os dos contos de fadas. Um príncipe verdadeiro.

As palavras da filha surtiram o efeito apaziguador que Sebastião não conseguia encontrar dentro de si. A maior parte de todos aqueles receios desapareceu como folhas sopradas por fortes ventanias de Outono.
- Vá lá! Não exageres. As únicas e verdadeiras princesas deste dia chamam-se Valquíria e Maria. São as mais belas mulheres de todo o reino. Não existe nenhum espelho mágico que ouse abrir a boca para dizer o contrário, pois se assim o fizer, de imediato se partirá em milhares de milhões de pedacinhos.
O pacto firmado com um rápido beijo na impecavelmente escanhoada face do pai.
- Só mesmo o papá para se lembrar de dizer assim essas coisas tão engraçadas. O Luís Miguel vinha a correr tão distraído, deu um tropeção no degrau da entrada e acabou por esfolar os joelhos. A avó já lhe colou dois pensos daqueles coloridos, um verde e o outro amarelo. Diz que não gosta de pensos vermelhos nem azuis. Anda sempre a pensar naquelas coisas da bola.
Sebastião permaneceu mais uns minutos a escutar o docinho feito de palavras da filha Maria. Deu consigo a desejar que aquele instante pudesse durar toda a eternidade. A filha, linda de morrer naquele sorriso indescritível, carregado com as cores da felicidade. Alguém o escutou e lhe trouxe Maria, embrulhada nesta pequena história infantil, para acalmar e serenar todas as suas ansiedades.
- Vou descer agora, está bem? A avó disse-nos que devemos esperar no salão para ensaiarmos mais uma vez a entrega das vossas alianças.

Como é que, afinal, se tinham passado, assim tão de repente, os quase dez anos de Maria? Porque não pode a chave do tempo ser usada para congelarmos, de quando em vez e as vezes que entendermos, os mais belos instantes de nossas vidas?

Porquê?
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