10 - ADORMECER


Passar os olhos pelo descanso. Só isso parecia importar agora fazer. Descansar um pouco as ideias, o corpo cansado. A vida tem sido ruim em imagens e decisões para Serafim. O casamento de Valquíria surgiu nesta altura como uma benesse dos céus. Uma possibilidade de dar algum descanso aos seus desgastantes dias de homem de negócios, de presidente de instituições e entidades de carácter humanitário. Ter algum espaço para se resguardar das secretas mas sempre necessárias reuniões com alguns dos seus colaboradores no terreno. Delegar a direcção e organização de muitas das complexas intervenções de carácter humanitário que tem espalhadas por esse mundo fora. Reduzir o número de viagens que necessariamente tem de realizar no âmbito das mesmas. Ganhar espaço para si próprio e para a família.

Sentiu dificuldade em recordar-se da última semana que com Teresa passou a viajar, ou em gozo de curto período de férias. As diabólicas exigências da sua agenda têm-no trazido acorrentado, devorando-lhe todo o espaço de uma vida.

Teresa conseguiu convencer Serafim a entrar para dentro do enorme cadillac. Abrigaram-se do vendaval provocado pela altíssima velocidade a que se deslocava a relva voadora. Sentou-se no banco de trás do automóvel, colocou a cabeça do marido no seu colo, servindo-lhe as suas pernas de aconchego à cabeça do esposo.

As mãos de Teresa iam caminhando sem destino ao longo do cabelo de Serafim. Lembra-se perfeitamente da mesma dança que os dedos faziam quando os dois namoravam, ainda jovens, tantas e tantas vezes sem o conhecimento dos pais. Para Teresa, era quase criminoso sair às escondidas de casa sem dar aviso, para depois ir ter com Serafim naqueles domingos, já lá vão para lá de duas dúzias de séculos. É assustador como o tempo se escapa sorrateiramente por entre as nossas vidas, e mascarado de anão vagaroso, avança tenebroso por entre tudo, pelo meio de todos, à estonteante velocidade da luz.

Quem seria Teresa naquele passeio de mãos dadas com Serafim, com dezassete anos de juventude plena, a preparar com o namorado secreto os planos para uma futura vida em comum? Quem é este belo senhor que repousa como criança assustada, deitado em seu colo, o corpo a tremer, a alma cansada?

Do lado de fora das vidraças do carro antigo, a escuridão da noite invade a paisagem, tal como se estivessem a viajar num imenso túnel sem qualquer iluminação exterior que pudesse dar informação do destino ou do lugar por onde vão avançando.

Serafim adormeceu naquele perfeito regaço. A mãe dizia-lhe que ele adorava mexer em chaves quando ainda era uma pequena criança. O ruído produzido pelos molhos de objectos metálicos reluzentes eram música de Verdi para os seus ouvidos. Não se percebe nem sente a velocidade a que segue o objecto voador. Também não se sabe de onde surge a luz avermelhada do interior do habitáculo, que vai dando sustento à vista e calor ao corpo. Teresa vai questionando a sua sanidade mental. Como é possível estarem ali os dois nesta estranhíssima situação? O calor que lhe transmite o corpo de Serafim deitado junto a si, dá-lhe as necessárias forças para não entrar em colapso e interromper os seus afagos com lágrimas de solidão. O marido parece agora bem mais tranquilo. O corpo parou de tremer, a respiração não é feita com tanta dificuldade e o coração parece bater de maneira bem mais perceptível e ritmada. Os olhos continuam a dar conta da sua necessidade de descanso. Até quando estarão os dois ali fechados, qual será o destino daquela viagem?

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