7 - MISTÉRIO



São tantos os segredos por revelar na aventura de uma vida. Realçar as formas de esperança sentidas, as perdidas e achadas surpresas, as boas e más lembranças e o tempo a nunca parar, avançando obcecado, somando anos aos anos que as vidas somam. Obedecer aos espantosos olhos da alma, sem deixar que as decisões possam transformar a duríssima realidade das vidas de outros em labaredas ainda mais incandescentes.

Serafim concede largas somas da sua fortuna a entidades de carácter humanitário. Não procura qualquer reconhecimento por esse seu cunho. Poucos são aqueles que possuem conhecimento desta faceta. Sabem apenas o estritamente necessário para que os intrigantes e extremamente complexos equilíbrios políticos ou de outros misteriosos poderes não possam para aqui vir a ser chamados. Muitos são os contorcionismos necessários e as montanhas de diplomáticos favores que lhe acabam sempre por ser exigidos. São inestimáveis as informações dos seus exclusivíssimos contactos. Só assim pode conseguir levar até bom porto essas complicadíssimas acções. Os locais por onde se torna necessário fazer chegar esses auxílios são dos mais inóspitos, perigosos e menos aconselháveis de todo o Mundo. São aqueles onde os conflitos se eternizam, onde a geografia e os factores climáticos resolvem, de um dia para outro, provocar o pânico, a morte e a destruição.

Serafim tem alma de marquês. Muitos são os que o consideram, como ao de Pombal, ora herói ora tirano opressor. A sua vida é um mistério para todos os que julgam encontrar nele um inimigo. Acabam, invariavelmente, por se transformar em seus fiéis admiradores. Outros, sem saber aquilo que os acaba de atropelar, sentem-se esmagados pela sua visão estratégica e pela sua capacidade argumentativa. Muitos são os que se melindram ao serem ultrapassados pela sua luz e sentem-se embaraçados e envergonhados. A inveja trepa-lhes alma acima. Passam a olhar para Serafim de Carvalho e Melo como um verdadeiro inimigo.

Ficou por momentos a observar a chegada de mestre Horácio, sem poder conter um sentimento de nostalgia ao observar o negro Cadillac de Ville de 56 tão incrivelmente rejuvenescido. Naquele automóvel nada indica que por ele tenham passado mais de cinquenta anos de vida. Serafim recorda-se do imenso gozo que lhe dava passear com ele, sem a capota vestida, pelas estreitas e curvilíneas estradas de Sintra.

As palmas que se fizeram sentir, após a sua imponente chegada pelas mãos do amigo, eram bem merecidas. Eram um reflexo do sentimento de beleza e de prazer que estas autênticas esculturas metálicas reluzentes podem proporcionar, não só para quem nelas passeia e usufrui, como a todos aqueles que as observam assim tão impecavelmente rejuvenescidas para o asfalto.

Horácio não cabia em si de contente. Ao sair da viatura descobriu o amigo Serafim a sorrir como um jovem rapaz. Sentiu de novo o fresco toque do enorme volante marfim, pela primeira vez nas suas mãos, a trepidar de prazer, após mais de vinte anos voltados para a escuridão da parede da velha garagem de Nisa.

- Os anos que já lá vão amigo Serafim! São estas coisas que nos fazem sentir mais velhos, mais experientes. A idade não perdoa!

Serafim olha para aquele objecto luminoso e as imagens de tantos passeios e memórias que nele fervilham passam pelos seus olhos à velocidade da luz.

Sem qualquer prévio aviso, a relva que pisavam ganhou vida própria. Qual tapete mágico, levantou voo e lentamente abalou dali para fora carregando consigo o automóvel, Horácio e Serafim, que foram apanhados completamente de surpresa. As suas vozes deixaram de se conseguir fazer ouvir. Gritavam feitos loucos mas das suas gargantas nada saía, som algum dali se fazia escutar.

O cenográfico ambiente onde se desenrolava, lá em baixo, a cerimónia, parecia agora bem pequeno, uma paisagem de uma beleza extrema, junto à orla costeira, suavemente batida pelas calmas ondas que encostavam histórias junto às falésias e aos areais das pequenas praias que por lá se escondem.

Serafim, colocado de joelhos junto a uma das perigosas beiradas daquele improvisado tapete voador, ia espreitando temerosamente para a paisagem que ia desfrutando neste passeio impossível.

Horácio tinha aberto a porta da viatura e esgueirou-se para o seu interior. Ganhou apenas coragem suficiente para espreitar uma única vez a paisagem que se fazia adivinhar, lá bem ao fundo, pela janela de trás do automóvel. Benzia-se vezes sem conta, anichado entre os bancos sem compreender nada daquilo que se estava a passar. Num instante, no espaço breve de um instante, sente a sua vida em perigo, na companhia do amigo Serafim, sem qualquer lógica ou explicação. Participa numa viagem para a qual nem sequer tinha sido convidado. Mas que raio de situação. Não conhecia ninguém que tivesse passado por experiência semelhante. O que lhe iria valer é que todos os presentes na cerimónia testemunharam esta estranhíssima forma de transporte. Caso contrário, como explicar esta experiência sem que lhe chamem louco ou alucinado?

- Horácio! Venha ver! Já reparou como é bonita a nossa terra vista assim cá de cima, com esta transparente tranquilidade? Horácio! Então, não se amedronte. Venha ver como é bonita a paisagem vista daqui.

O companheiro, com algum custo, saiu do seu esconderijo, abriu a janela da porta do Cadillac, colocou a cabeça, do nariz para cima, à mostra e lá espreitou com algum custo e com alguma tremideira nas pernas e na alma.

- Amigo Serafim, por favor, venha cá para dentro! Não se debruçe assim dessa maneira que pode cair! Mas afinal de contas, o que é que se está a passar connosco? Tudo isto é um imenso e estranhíssimo mistério. Algum bruxedo que resolveram atirar na nossa direcção. Algum bruxedo amigo Serafim!

- Nada disto a si o parecia incomodar demasiado. Estava habituado a que a vida, sem disso dar aviso, transformasse as normais realidades do dia a dia em momentos totalmente inverosímeis. Este mais não era do que um desses estranhos momentos. Acredita que a todos os humanos estes instantes são servidos, sem aviso, para que dúvidas bem mais complexas possam fazer parte dos seus pensamentos. Ajudam a meditar acerca do que somos e qual o papel que cada um de nós cumpre nesta imensa peça teatral que é a vida em física existência. Ajudar a aprender, compreender e crescer enquanto ser.

- Horácio, vá lá, não seja assim criança que já deixou de ter idade para isso! Venha para aqui deliciar-se com esta maravilhosa passeata, apreciar as delícias desta espantosa vista aérea. Olhe que tão cedo não voltaremos a ter a sorte de subir aos céus desta maneira. Mais vale aproveitar e apreciarmos o passeio! Do que é que está à espera? Venha cá para fora, ande lá!

A muito custo, Horácio lá acabou por seguir o conselho do amigo de longa data. Sentou-se com muito cuidado ao seu lado, com as mãos bem vincadas na fresca relva que decorava aquele estranho objecto voador. Aos poucos foi perdendo os receios, deixando-se levar pela singeleza e invulgaridade daquela situação. Deu consigo a olhar para Serafim. Não conseguiram evitar a mais sonora das gargalhadas. Riram durante uma quantidade infindável de minutos como se voltassem novamente a ser dois putos rabinos no mais puro gozo das suas inocentes brincadeiras juvenis.

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