13 - DÚVIDA


As vozes de crianças embrulham o ar como presente secreto. As brincadeiras vão sendo espalhadas ao desbarato, vão-se misturando com o cheiro a terra ainda húmida das chuvadas tardias da Primavera daquele casamento. O sonho feito de vontade e desejo acabara por vencer. Teresa e Serafim iam descendo mais vagarosamente depois dos velozes instantes iniciais da vertiginosa queda. O peso da descida, que tinha provocado o desfalecimento a Teresa, vai dando tréguas. Os olhos recuperaram a vontade e as pálpebras abrem-se novamente na escuridão. Começou a ouvir sons de crianças a temperar o escuro, juntamente com o cheiro agradável de relva molhada. Reconheceu alguns dos timbres como sendo familiares contudo, foi incapaz de lhes atribuir a certeza de um nome. Uma voz era de tal forma familiar que a intrigava mais do que todas as outras. Movimentava os braços no escuro, instintivamente, na tentativa de agarrar a menina dona daquela melodia. A voz era perfeitamente audível, aproximava-se de Teresa e aumentava-lhe a vontade em segurar a menina que ia sentindo cada vez mais perto de si.

Serafim identificou sonoridades de jogos infantis que lhe recordaram os momentos passados com os companheiros de brincadeiras, ainda muito criança. Com eles partilhava as fisgas, súbitas aventureiras aos mais altos carvalhos, banhos de rio em tardes quentes de Verão. Ouviu com toda a clareza os sons do dia em que partiu a perna numa tola acrobacia realizada do alto de um pequeno barranco até se espreguiçar dolorosamente no meio do chão, com aquela dor insuportável a subir-lhe corpo acima. E sempre adornada pelo cheiro fresco da relva viçosa, fresca, que o acompanha quase desde o início da queda, e mais intensa desde que a velocidade da descida se tornou mais suportável e tranquila.

Quando irá acabar aquele voo? Por quanto tempo mais será possível aguentar tanta estranheza, tanta dúvida temperada com o sal da ansiedade?

As mãos de Serafim avançaram para a frente sem que ordem para isso tivesse saído da sua vontade. O corpo ganhou um pouco mais de velocidade, esticando-se para favorecer a aerodinâmica do voo. As mãos de Teresa ficaram mais perto das suas no centro daquela escuridão perfumada. A ligação entre os dois foi restabelecida com surpresa. Teresa pensou ter dado a mão à menina da melodiosa voz infantil e que lhe soara tão estranhamente familiar. Serafim julgou por instantes ter sentido a mão do amigo Horácio, o primeiro dos compinchas a chegar até ele depois da queda desamparada pelo penhasco abaixo.

- Meu amor? És tu, não é verdade? Que poder gigantesco nos trás por aqui perdidos e desamparados nesta escuridão sem fim? Perdoa-me por te ter abandonado lá em cima e ter saltado em frente rumo a este desconhecido. Não conseguia suportar mais o peso daquele silêncio, a dor e o medo que me causava aquela indefinição lá no alto. Nem o conforto do teu abraço foi suficiente para me acalmar a vontade de sair de lá para fora. Perdoa-me, mas foi mais forte do que eu.

Serafim agarrou com toda a força do mundo as mãos de Teresa.

- E que marido sou eu? No momento em que seguiste a direcção dessa tua vontade, hesitei, ponderei eternos segundos de malfadada cobardia antes de seguir no teu encalce, com medo deste desconhecido.

Agarram-se um ao outro com sentida felicidade.

A descida continuou tranquila no meio do silêncio, pintada com as cores da dúvida e do vazio.

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