64 - DESEJOS



Aos jogos dos deuses, avó e neta têm respondido com as forças da verdade, com as forças da amizade e da coragem, com as forças que se encontram bem vivas no sangue que corre nas veias da sua tribo. Defender os interesses dos seus protegendo-se mutuamente e de maneira continuada. Nessa tarefa aprenderam a coordenar as suas forças. São quase perfeitas e agora que as dimensões do caminho se encontram quase todas percorridas, as duas não sentem grandes receios ou temores.

- Pai! Porque te vais embora? Já não gostas de tentar descobrir os meus esconderijos?

Maria levantou muito ligeiramente a porta do pequeno porta-bagagem para que a sua voz fosse mais perceptível. Sebastião estava a dirigir-se para a saída da garagem quando escutou a voz abafada da filha vinda da parte de trás do MG.

- Mas o que é que se passa na tua cabeça Maria? Onde é que já se viu tamanho disparate? Arriscas-te a ficar presa aí dentro com falta de ar! Esse é o pior de todos os lugares que podias escolher para brincar às escondidas. Anda, toca a sair daí que estamos todos à vossa espera no jardim.

A menina sabia que ainda não era este o momento certo para explicar ao pai o porquê desta aventura. As experiências por que passou deram-lhe esta capacidade, ensinaram-lhe a relativizar as prioridades. Saber ser a menina que é na altura devida, saber quando dar uso aos seus poderes, saber como e quando esconder rapidamente as poderosas garras e acalmar os vigorosos músculos, saber quando obedecer ao pai e quando ajudar a avó, o primo Luís e os restantes membros da sua tribo.

- Está bem papá! Tens razão. Desculpa, mas o Luís Miguel nem se deu conta que eu estava mesmo aqui, pertinho dele. Acho que adormeceu ao volante do teu carro.

O pai ajudou-a a sair daquele local apertado. As asas de obsidiana tinham ficado ocultas no interior das suas elegantes omoplatas. Apenas o pequeno arranhão que fizera quando as novas amigas se apresentaram pela primeira vez continua bem visível no centro da testa.

- Onde é que foste arranjar esse arranhão tão grande Maria? Deve ter-te doido imenso. Temos de ir já tratar disso, limpar a ferida antes que infecte.

A menina já nem se recordava daquele sinal que a si própria provocara. Seria errado impedir o pai de fazer o seu papel. Seria errado portar-se de outra maneira que não a habitual. Tem de fazer de conta que o tratamento lhe provoca a incerteza da dor.

- Mas papá, é só um pequeno arranhão sem importância, nada mais do que isso. Não gosto do cheiro do álcool. Arde tanto que até dói. Não quero papá, não quero nada disso! Só se for um pequeno penso colorido como aqueles que o Luís gosta que lhe ponham nos joelhos. Só isso está bem papá, pode ser?

Nem pensar em ceder a estas palavras de fraqueza de Maria. A ferida era feia e parecia até estar já ligeiramente infectada.

- Isso é um grande disparate! Tu, uma menina tão valente e corajosa, a fazer fita por uma coisa tão insignificante. Francamente Maria, nem parece coisa tua!

O pai não tinha percebido a subtileza da estratégia. O diálogo correu na perfeição. Tinha de o acompanhar até casa para realizar o curativo.

Deixara a porta do porta-bagagem propositadamente aberta.

O espanto com que o deus jaguar recebeu a humilhante derrota destruiu-lhe grande parte do orgulho e da soberba. Terá de se sujeitar ao desejo da vencedora, seja ele qual for. Teresa venceu Tezcatlipoca num improvável e curtíssimo combate.

O que mais deseja é que esta viagem por terras tão inóspitas acabe rapidamente. Depressa entendeu que gastaria o prémio de maneira totalmente desajustada caso fosse esse o seu pedido. Tem de se acalmar para estudar qual o melhor caminho a dar à sua consciência. São muitas e bem mais sérias as possibilidades a ponderar.

Será possível trazer Serafim de volta da dimensão onde se perdeu.

Será possível voltar com o tempo atrás até ao início deste dia alucinante.

Será possível voltar a encontrar-se com os seus pais para recordar as tardes doces passadas a contar histórias e sonhos.

Será possível voltar a ser a criança pequena da sua infância longínqua.

Será possível pedir indulgência eterna para a actual e para todas as futuras gerações da sua tribo.

Será possível pedir aos deuses que promovam a máxima protecção à quarta criação da humanidade.

Será possível desejar que o tempo seja moldado de uma outra forma que não esta, para que ao avançar não se faça sentir o excessivo peso das suas marcas.

Será possível pedir que aos humanos seja ensinado o funcionamento dos relógios divinos e lhes seja permitido manusear esses complexos mecanismos.

Será possível pedir um copo de água para beber. A sede é tanta que a língua se colou ao céu-da-boca numa autêntica tortura.

O Luís Miguel ficou espantado por ver o tio Sebastião sair da garagem acompanhado pela prima Maria. Tinha-se colocado por detrás do grande plátano a dar protecção à corda e às bonecas. Aguardava que o noivo pudesse ser rápido a sair da garagem para depois voltar para o seu posto de vigia, como fiel general que é. Sentado ao volante da máquina, aguardaria pelas instruções supremas da mais valente das meninas do universo. O que não estava à espera era disto. Ver Maria de mãos dadas com o pai a caminho da mansão, com a maior das naturalidades. Era, no mínimo, um estranho acontecimento.

Será que as afiadas e assustadoras garras da prima continuam a crescer nas suas bonitas mãos de princesa? Será?

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