62 - ALIANÇA


Os caminhantes que ali se juntaram venceram todas as exigências destas dimensões.

Teresa tem para escutar as novidades de Maria. Adivinha que essa será a mais inquietante de todas as etapas que até aqui a trouxe. A sua neta está irreconhecível. Tudo nela é esplendoroso e deslumbrante. O seu aspecto físico é a mais perfeita imagem de poderosa leveza. As suas enormes asas de borboleta dourada transmitem força e reflectem na perfeição as majestosas transformações que o seu novo corpo de atleta dá a conhecer. Conseguiu derrotar o guardião Xolotl de maneira tão tranquila que o gémeo de Quetzalcoatl ainda não conseguiu entender a real dimensão desse acontecimento.

- Não posso imaginar como conseguiste aqui chegar nem tão-pouco entender como te transformaste desta espantosa maneira. E o caminho que ainda nos falta percorrer? Como nos irá ainda ele sobressaltar?

Maria olhou para Yatughuman antes de concretizar a parte espinhosa da sua missão. Aqui é o domínio do seu padrão alado. As forças da sua nova e imponente figura fraquejaram por um delgado centésimo de segundo. Apeteceu-lhe naquele imperceptível instante voltar ao princípio do dia, quando o pai a apanhou numa correria desenfreada pelas escadas acima para dar conta das brincadeiras proibidas do primo Luís na garagem junto ao jardim.

As duas necessitam de privacidade para que se possa dar conhecimento daquilo que tem de ser comunicado. No exacto momento em que os olhos de Maria se afastaram definitivamente dos olhos de Yatughuman, o índio voltou a tomar a forma imponente de grande serpente emplumada, transformou-se majestosamente e serpenteou veloz pelos céus de Mictlan em direcção à sua cúpula sombria como um imenso cometa luminoso.

Os animais selvagens que habitam esta dimensão destroem os corações dos caminhantes, arrancam-nos violentamente do peito e fazem-nos desaparecer para sempre engolindo-os avidamente num frémito de sangue e crueldade.

Os ferozes ocelotes preparam-se para receber a caminhante. Ouvem-se ao longe os seus rugidos na escura dimensão de Teocoyolcualloya. Muitos corações passaram pelas suas bocas famintas e raivosas. Depois de todas as carnes serem retiradas e despedaçadas, os caminhantes são sujeitos a mais esta provação devastadora. O que os distingue, o que os caracteriza enquanto seres de coração sensível, é destroçado nesta dimensão definitiva.

- O avô morreu! Não consigo encontrar uma outra forma de lhe dar a conhecer esta notícia.

Dificilmente Teresa encontrará as forças para não sucumbir neste momento. Precisa do auxílio da neta para carregar o fardo desta notícia com a extensão corajosa do seu carácter. O mesmo que se escondeu e lhe proporcionou uma gigantesca névoa de lágrimas e de vazio.

Os animais enfurecidos pareciam possuídos por uma raiva do tamanho do universo, tal a intensidade dos rugidos.

Silêncio! Tentar encontrar por uma gota de silêncio onde ele não se conseguia fazer escutar.

- Maria, onde poderemos nós descobrir um pouco de silêncio? Conseguirás tu, tão poderosa e dourada, arranjar maneira de fazer pintar este momento com as necessárias cores do silêncio?

A neta tentou levar a avó para longe da entrada ruidosa e selvagem daquela dimensão, mas essa era uma tarefa irrealizável mesmo para o mais poderoso de todos os deuses de Mictlan. Maria tem de libertar Xolotl e procurar nas forças do inimigo a aliança improvável para dar auxílio à avó na travessia da escura dimensão de Teocoyolcualloya.

A raiva invulgar que se escuta da escura entrada de Teocoyolcualloya não é muito comum. Nem sempre são invocados todos os jaguares para despir e torturar os corpos dos penitentes ao caminharem nas suas escuras profundezas. O senhor do espelho fumegante aparece pela sétima dimensão de Mictlan quando pressente um desafio à altura das suas capacidades. Aqui e agora, para além de todos os jaguares de Teocoyolcualloya, também os ferozes ocelotes se lhes vieram juntar, assanhados pela presença enfurecida de Tezcatlipota, transformado em gigantesco jaguar. Desejou testemunhar o sacrifício de Teresa ao passar pela sétima dimensão de Mictlan. Quer ser ele próprio a ordenar e a participar todas as ordens aos animais embrutecidos que irão transformar esta passagem na mais violenta e tormentosa de todas as passagens.

Maria voou rapidamente até onde Xolotl ficara abandonado.

Não foi muito o tempo usado a pensar na sua sorte, não foi muito o tempo que lhe fustigou as feridas da vaidade. Ao sentir-se assim tão facilmente subjugado e em posição tão fragilizada, ele, o poderoso e terrível guardião de Mictlan, enfrentou pela primeira vez a vitoriosa Maria cara a cara quando ela chegou veloz da entrada de Teocoyolcualloya. Não conseguiu conter uma ignóbil sensação de alívio. Ele, o indomesticável cão de Mictlan, ter de se sujeitar àquele tratado de paz com esta espécie de cópia humana de Itzpapalotl. Ter de se sujeitar a fazer de anjo negro protector de Teresa na travessia da sétima dimensão desta morada. As chagas que Maria abriu por todo o corpo mantinham-no informado do espantoso poder da adversária. Não estava em condições de poder negar este tratado, caso contrário perder-se-ia para sempre da memória dos vivos e dos mortos, esquecido algures naquele sombrio e remoto local de Timiminaloyan.

Teresa estava inconsolável. Não havia uma única parte de si que não se sentisse vazia e ausente. A rapidez com que a neta se anunciara, como um anjo vestido com as cores do sol, para lhe proporcionar a trágica notícia da morte de Serafim, foi deveras surpreendente. Percebeu agora a razão do súbito desaparecimento do marido pelas diferentes dimensões destas paragens. Tinha sido corajosa ao avançar sem hesitações no encalço de Serafim, desde que ele tombou no verde tapete de relva do jardim. Acompanhou grande parte da sua viagem bem de perto. Sentiu as ideias do esposo muito desfocadas, muito desviadas da efectiva realidade do mundo dos vivos.

A sua imensa coragem transportou-a até aqui, deu-lhe a conhecer muitos domínios e muitos fragmentos escondidos da sua existência que desconhecia completamente. Esta valente Teresa é a mesma mas já é outra. É a Teresa que Maria irá necessitar daqui para o futuro.

Xolotl aproxima-se da viandante com as ordens decoradas. O seu corpo não se negará a enfrentar a violência das batalhas que se adivinham. Atrás de si caminha Teresa, avançam os dois pelos negros e ruidosos caminhos de Teocoyolcualloya. O terrível Tezcatlipoca não se fará rogado na hora em que perceber que esta penitente iniciou a sua caminhada devidamente apadrinhada.

As primeiras feras atacam sem avisar. São mais de quarenta os jaguares que se lançam raivosamente em direcção a Teresa, protegidos pela escuridão, subjugados e derrotados por um Xolotl muito debilitado. Tem o corpo repleto de feridas profundas causadas pelas garras de Maria no seu corpo de cão, acrescentadas agora pelas violentas e brutais dentadas que os selvagens jaguares adicionaram ao guardião. Tezcatlipoca subestimou a capacidade de luta e de sofrimento que estas almas possuem. Através do seu espelho feito com a mais negra e polida obsidiana, preparava-se para assistir a uma lenta e dolorosa destruição, a um ritual onde um festim criado especialmente para seu gáudio pessoal fosse prolongado até à mais cruel das ansiedades. O que lhe era dado a assistir não se assemelhava a nenhum desses castigos. No centro de um combate inacreditável assistia a um Xolotl devastador. Rodeado de mais de uma vintena de jaguares, com sangue, carnes e membros despedaçados, cabeças esmagadas e corpos de felinos totalmente destroçados, o guardião de Mictlan resolvia cada investida dos selvagens animais com uma irrepreensível habilidade.

Teresa foi obrigada a avançar para o início desta sétima dimensão com a dor da novidade no peito. Ainda não se tinha refeito da notícia quando verificou que dos dedos saltaram enormes garras, iguais às de Maria. Os braços e ombros acompanharam em assombroso desenvolvimento os novos e ensanguentados presentes. Com a força e o cheiro do sangue a ferver-lhe nas vontades, protegia-se vigorosamente dos assaltantes, dilacerando-lhes os corpos sarapintados, arrancando-lhes olhos e narinas, ferindo-lhes os membros e as mandíbulas, que abria até que as cabeças se fendiam pelos maxilares promovendo assim uma morte rápida aos selvagens animais.

E mais quarenta destas feras foram enviadas pelo senhor do espelho fumegante para substituírem as primeiras que, incompreensivelmente, saíram derrotadas pelos caminhantes num invulgar estremecimento. O coração de Teresa bate forte dentro do peito. Tezcatlipota levanta-se do seu trono com a mão no espelho negro e os olhos cintilantes de raiva. A visão que este reflecte é a da cor vermelho vivo do músculo cardíaco da combatente, que lhe vai enviando ritmados convites para lutar.

Xolotl e Teresa continuam a batalha com os animais do deus da noite, para seu completo desespero. Derrotam, uma após outra, as mais de quarenta feras que lhes foram atiçadas.

Assumindo o erro, levanta a escuridão de Teocoyolcualloya onde se abriga e resolve dar cobrança ao desafio. O coração de Teresa ser-lhe-á arrancado do corpo, erguido na direcção da cúpula sagrada de Mictlan para sua honra e por si mesmo devorado. Finalmente, o corpo da penitente será lançado para as profundezas desta dimensão onde permanecerá esquecido até ao fim da quinta criação da humanidade.

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