57 - SOFRIMENTOS


Xolotl não percebera quais os motivos que levaram o irmão a proteger, com o seu imenso corpo de serpente, os desagregados corpo e alma de Serafim.

Quando deu conta do descalabro, desapareceu até às profundezas dos seus domínios para sarar as dores que acabara de sofrer. A sua condição de gémeo fazia-o sentir as mesmas fortes e devastadoras dores que Quetzalcoatl experimentou ao dar protecção a tantos punhais de gelo que lhe iam trespassando o corpo poderoso. As suas primeiras intenções tinham sido amaldiçoadas, e uma inoportuna deslocação de vontades alterara completamente o rumo dos acontecimentos, mudando-lhe os planos.

Xolotl sofreu triplamente.

Sofreu ao perceber que a sua força gigantesca se virara contra si. Nunca tinha passado por uma situação igual desde que se recorda de recordar. Não era este, seguramente, um acontecimento digno de deuses. As dores cruéis que só aos humanos são dadas a provar passaram do corpo do seu irmão, que acabou fragmentado em pedaços, para o seu próprio corpo de soldado das trevas. Inimaginável!

Sofreu ao ver o irmão destruído por um acto seu. Mesmo sabendo que o grande rei Mictlantecuhtli, senhor governante de todo Mictlan, tinha sido o principal responsável deste estranho enredo. Consumiu-se ao ver e ao sentir o irmão despedaçado pelas maiores e mais poderosas lâminas de gelo da montanha que destruiu.

Sofreu horrores ao entender, finalmente, a sua verdadeira dimensão enquanto deus. Essa é uma ferida terrível que demorará tempo a cicatrizar. O presunçoso Xolotl abandonou as geladas paisagens de Izteecayan sem ter tido a hombridade de ajudar o irmão que jazia inanimado, mutilado em tantos pedaços, numa neve transfigurada com as cores do sangue derramado.

Foi até onde se conseguiu arrastar, duvidando de tudo o que o irmão fez pelos humanos.

Duvidou da vontade de Quetzalcoatl ao derramar o seu próprio sangue por cima de tantos ossos gastos, quebrados, roubados e partidos, naquela fuga atribulada onde contaram com a cumplicidade de Mictecacihuatl.

Duvida das suas capacidades de sentença, de carregar em suas mãos o poder extraordinário em decidir quem avança e quem permanece encarcerado para todo o sempre nas diversas dimensões de Mictlan.

Duvida das dores que sente agora como suas. Essa parte da memória quer apagar de si, mas não consegue. Vai ouvindo, bem profundas, as gargalhadas de prazer do grande deus Mictlantecuhtli, que o usou descaradamente como marioneta divina, para seu gáudio e vingança pessoal. O sangue que o irmão usou para dar vida à quinta construção da humanidade é o mesmo que corre nas suas veias de guardião, é o mesmo que nervosamente lhe fez chegar as dores sentidas pelo irmão enquanto o corpo da cobra se esvaía nas brancas neves da quarta dimensão.

Escondido algures nas profundezas de Mictlan, sentado no seu trono cerimonial, Xolotl descarrega as dores contando para si próprio a história que gostaria que tivesse acontecido.

- Não vou abandonar o corpo destroçado de meu irmão, despido e ensanguentado, em tantas partes cortado. Vou transformar a montanha de gelo cortante em denso nevoeiro para nos camuflar a retirada. Mictlantecuhtli deseja vingar-se de nós, vingar-se da nossa ousadia, da vitória obtida por Quetzalcoatl ao promover com sucesso a espantosa quinta criação da humanidade. Sabe onde andamos, o que fazemos, descobriu a traição de Mictecacihuatl e jurou destruir todos os nossos poderes através de nós próprios. O seu poder é imenso! A minha sabedoria dá-me ordens para abandonar estrategicamente as primeiras intenções. Por estranhos e mágicos desígnios, vem meu irmão sendo atraído por estes humanos a quem protege como a nenhum outro. Sem que ele perceba, vou carregá-lo para longe daqui, escondido no centro do denso nevoeiro que produzirei, e sem lhe pedir qualquer licença.

Por muito tempo permaneceu o guardião escondido, repetindo até à exaustão a história que gostaria que tivesse acontecido.

As dores de Xolotl começavam a ser bem mais fortes e sentidas, quase tão fortes como as que o irmão evitara a Serafim. Os humanos sentem estas realidades no corpo e na alma, ao contrário dos deuses, mas foi através do sangue derramado pela grande cobra emplumada que lhes foram passados estranhos e misteriosos poderes em forma de segredo.

Ao ajudar o irmão, ajudar-se-ia também a si mesmo, perceberia melhor porque desejam alguns deuses tornar-se mais humanos. Perceberia melhor porque desejam alguns humanos alcançar o mesmo estatuto dos deuses que os criaram.

Sentiu melhorias graduais em forma de alívio. As dores insuportáveis foram serenando até que não mais lhe afectaram os sentidos.

A pequena Maria salvou a grande cobra emplumada do bárbaro destino servido como vingança pelo grande rei dos mortos, mesmo junto ao corpo abandonado do avô.

Chalchiuhtlicue prepara-se para dar novo alento às vontades renovadas de Serafim. Quetzalcoatl pediu à grande deusa que ajudasse aquela alma a juntar-se à de Teresa, que avança sozinha no início da sexta dimensão de Mictlan.

Ao correr de mãos dadas com o Luís pelo grande jardim do solar dos seus avós, Maria recorda as últimas palavras do avô através da sua desfocada visão em tons de cinza:

- “Queres que eu reze, eu rezo! Tens de me ajudar a preparar mais uns quantos Natais, mais um ou dois casamentos, se necessário for.”

A menina prepara-se para invocar novamente a grande deusa da saia de jade, para que ajude os seus avós e eles possam finalmente atingir a última dimensão de Mictlan. Sem que o seu primo travasse a correria veloz em que ambos seguiam, Maria cantou bem alto uma estranha e muito antiga canção:

- Senhora Chalchiuhtlicue de Merciful

És bem-vinda neste mundo

Lava-nos e purifica-nos

De toda e qualquer impureza,

Livra-nos de todo o mal

Fazendo que neste mundo

Resida somente a paz e a sabedoria.

Senhora dos começos

Somos teus humildes servos

Fazei com que a criança pura

De nossa alma, se faça sempre presente.

Tão rápido quanto o tempo o consegue permitir, toda a impressionante extensão branca de Izteecayan derreteu transformando-se, primeiro, num caudaloso rio de águas gélidas e cristalinas. Seguidamente, ao fazer um sinal com o braço direito, Chalchiuhtlicue transformou toda a imensa quantidade de gelo e neve que por ali se amontoaram em dois gigantescos oceanos. Serafim foi arrastado pelas poderosas correntes que se formaram, ia dando aos braços e às pernas como podia para se manter à superfície. Não sentia frio, nem calor, apenas uma peculiar e intensa pressão no topo da cabeça que o empurrava para baixo daquelas águas puras e cristalinas, que o obrigava a manter-se debaixo delas por longos momentos, até que a pressão abrandava e lhe permitia dar de beber aos pulmões.

Este é um dos muitos rituais de banhos sagrados que Chalchiuhtlicue aplica aos que se sentiram perdidos, abandonados ou já sem qualquer esperança no porvir. Desta maneira, o corpo e alma de Serafim fica renovado e purificado, pronto para uma vida nova e esperançosa. Será entregue a Yatughuman, ainda na quarta dimensão alagada de Mictlan, para que o índio proceda como melhor entender.

Quetzalcoatl espera pela chegada do corpo purificado de Serafim junto à entrada Oeste de Izteecayan. Prepara todo um conjunto de estranhíssimos objectos que irão dar ajuda na passagem solitária de Serafim pelas escuras e muito abaladas paragens de Paniecatacoyan.

Teresa percorreu sozinha e abandonada todos os tenebrosos caminhos da quinta dimensão. Foi Maria que levou à avó o importantíssimo segredo e lhe deu a força necessária para avançar até à saída daquele monstruoso castigo.

Teresa aguarda Serafim junto à porta de entrada de Timiminaloyan, a sexta dimensão desta jornada. Só depois da chegada do marido avançará esperançosa pelas suas escuras profundezas.

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