61 - DOURADO



Para qualquer dos outros deuses, teria sido um feito extraordinário derrotar o todo-poderoso Xolotl. Ninguém se recorda de alguma vez ter sido dada uma lição destas ao guardião. Todos conhecem o seu imenso poder e quando se enfurece, nem o próprio Mictlantecuhtli ousa chegar perto de si.

E o que conseguiu Maria? Percebeu que tinha chegado a hora de dar a entender a Xolotl qual a verdadeira grandeza do seu poder. Bem mais doloroso que todas as dores físicas que lhe aplicou, foi ter-lhe dado a conhecer esta nova percepção das suas capacidades. Uma tão pequena e frágil menina humana, um conjunto franzino de ossos partidos por cima dos quais o irmão derramou o seu sangue, como a todos os outros, veio às profundezas de Mictlan para o derrotar com a maior das facilidades.

Quando Maria comunicar à avó aquilo que Quetzacoatl já entendeu, as dores serão repartidas e sentidas por todos eles com a mesma intensidade. O avô tinha desistido da corrida. Não tinham percebido que o peso atroz das suas escolhas de vida lhe assombrava todos os segundos da existência. Toda a sua vida quisera ter tido a coragem para fazer outras coisas que não as que acabou por realizar. Toda a sua vida andou doente por não conseguir evitar sentir as coisas dessa forma, e o Serafim que foi sendo construído cresceu enfermo, acabando por deixar crescer no peito um imenso coração degenerado. Enquanto os dias que antecederam o casamento de Valquíria iam passando no reboliço das preparações da festa, Serafim antecipava esta despedida como uma miragem bem real, como um filme que lhe tinha sido apresentado em guião e que lera de uma ponta à outra sem respirar. Alguém assim o desejou e as forças do guionista eram as mais poderosas de todas as forças.

A todos eles chegou o tempo de chorar. Deu vontade de chorar a Serafim, que existe agora nas memórias de Maria, de Teresa e de Yatughuman, que de maneira tão abnegada fez desta família a sua, tentando protegê-la como se fossem eles sangue do seu sangue, carne da sua carne. Sentem-se agora mais sós. As histórias de Serafim ficaram para sempre perpetuadas nas suas lembranças, onde dançam num bailado dourado. Surgem em imagens sobrepostas, rápidas, tépidas, doces, ternas, enfileiradas, contínuas, desfocadas, pesadas, leves, serenas, tranquilizadoras, amigas, dolorosas, felizes, desesperadas, quentes, perfumadas, deliciosas, musicais e muito, muito reais, tão reais que dói pois dão a sensação de o poderem tocar e sentir fisicamente.

Esta viagem só pode acabar em bem se o destino de Teresa for o de chegar ao casamento de Valquíria ainda hoje. Tens de ser tu Maria, agora que sabes o valor que tens dentro de ti, a transmitir à avó esta notícia. Não será fácil, mas ela já o adivinha. Os nossos corações conseguiam comunicar coisas boas e menos boas, mesmo afastados continentes um do outro. Quem a puxou para a frente em direcção à escuridão de Timiminaloyan fui eu e não Xolotl. Estava a custar-me muito sentir a tua avó presa à ideia de que eu iria ali aparecer. Não me foi fácil fazer isso, mas Quetzalcoatl deu-me a entender tudo o que poderia suceder à nossa tribo se eu não o fizesse. Um aparente pequeno remédio para um grande mal. E depois surgiste tu, tão transfigurada e poderosa, a dar uma lição de vida a um deus. A minha pequena e poderosa Maria, a quem tive como ideia apagar antes de ser. Este é o caminho que têm de percorrer, não podes ignorar estas palavras que sentes dentro de ti. Agora vai, apressa-te a dar esta notícia a Teresa. Yatughuman já está junto dela com todas as prendas que eu devia ofertar a Mictlantecuhtli e a Mictecacihuatl após avançar vitorioso pelas últimas dimensões de Mictlan.

O coração de Maria batia como se os sinos de todos os campanários tocassem ao mesmo tempo no seu interior. Não conseguiu dar descanso às suas novas asas de obsidiana que lhe cresceram tal e qual as da deusa Itzpapalotl. Voou luminosa, tão luminosa que uma intensa luz dourada fez desaparecer a escuridão de Timiminaloyan, desenhando uma longa estrada amarela nos céus negros daquela dimensão.

Yatughuman juntou-se a Teresa à entrada da sétima dimensão. Os dois mantêm-se em silêncio, olhando-se de frente, entendendo exactamente o que lhes passa pela alma. A distância entre o índio e Teresa é a mesma distância que separa as bonecas de trapos de Maria, é a mesma distância que a corda de Serafim possui em tamanho entre os dois nós.

- Maria deve estar quase a chegar. Compete-lhe a ela dar-lhe a notícia que já adivinha. Terá de ser assim para que tudo se cumpra tal como estabelecido. Nada de mal lhe irá acontecer daqui para a frente. É com Maria que se terá de preocupar. É a ela que vai ter de continuar a ensinar como até aqui tem feito.

Os ventos acalmaram desde que o corpo de Teresa se recompôs. A escuridão impede a compreensão física destes fenómenos. Todas as imagens e dores são reais, muito intensas e bem reais, mas no final da provação e do tormento, de todas as setas cravadas em tanta carne despedaçada, ao avançar até ao final da etapa com a esperança renascida e a dimensão vencida, o corpo encontra-se quase como no início da sexta dimensão, inteiro mas mais revigorado. Nada nele dá indicação das torturas a que foi sujeito, da gravidade dos ferimentos e das chagas que o despedaçaram e mutilaram. Nada, absolutamente nada

Yatughuman olha para Teresa com orgulho. Nesta criação da humanidade, a vitória estava ali bem patente na sua frente. As dádivas de sangue não tinham sido realizadas em vão. Era fascinante perceber como cresceram e se tornaram tão poderosos estes humanos. Na alma de Teresa e de Maria está bem presente muito daquilo que de bom reconhece em Quetzalcoaltl, e não pode impedir que estes seus pensamentos possam ser interpretados por Teresa pois esse ensinamento o próprio lhe forneceu. O que de bom existe no coração puro de muitos homens, também lhes foi dado em igual quantidade para poderem destruir essa bondade.

- Não será de todo difícil a Maria chegar até nós. Desde que os ventos se acalmaram por aqui, sinto o coração de minha neta cada vez mais próximo, como se o meu coração batesse um bocadinho mais depressa sempre que a distância fica mais curta. Continua a mesma menina, mas já não pode ser indiferente a tantas transformações, a tantos segredos que aprendeu tão depressa. E se o tempo é cruel! Ainda me recordo do meu casamento como se tivesse sido apenas ontem. Recordo-me da viagem de núpcias até ao México, uma viagem que provocou no meu Serafim uma transformação quase imperceptível mas muito, muito significativa. Lembro-me da noite passada ao relento em plena cidade de Teotihuacan. Ele ficou tão fascinado com a visão daquele imenso espaço arquitectónico que perdeu toda a noção do tempo ao passear pelas suas imensas avenidas e pirâmides. A última camioneta saiu em direcção à cidade do México e nós tivemos de permanecer por ali, dormindo ao relento. Repetiu por duas ou três vezes uma frase antes de adormecer por instantes. Disse “aqui é o lugar onde tudo começou e onde tudo irá acabar para recomeçar novamente”. Estava demasiado cansada e um pouco irritada por ir passar a noite naquela incómoda situação. Confesso que, por esse motivo, não lhe dei a devida atenção. Mais tarde perguntei-lhe o que queria dizer com aquelas palavras e porque tinha ficado assim tão impressionado com aquela cidade antiga. Nunca me foi capaz de dar uma resposta concreta. Ou dizia que já não se lembrava bem do que tinha dito, ou que estava a pensar em voz alta para os seus botões coisas sem importância, ou que eu talvez tivesse ouvido aquilo a algum dos guias mexicanos do lugar. Mas eu percebi imediatamente que naquela cidade antiga algo de muito estranho tocou a vida de Serafim como mais nenhum outro lugar voltou a fazê-lo.

Quando acordou estava muito branco e não conseguiu voltar mais a adormecer. Ficámos os dois muito agarrados a olhar o céu estrelado. Lembro-me que estava uma noite magnífica, uma lua quase cheia, não fazia frio nenhum e que Serafim tremeu a meu lado todo o restante tempo que durou aquela madrugada, até aos primeiros raios de sol terem trazido a luz da manhã e os primeiros turistas do novo dia que acabara de nascer.

Maria vai riscando o céu atrás de si com uma cor amarela como o ouro. Um dourado luminoso pinta a escuridão com ondas de luz, um bailado voador aproxima Maria da avó e de Quetzalcoatl com a triste notícia da morte física do seu avô Serafim.

O coração de Teresa bate muito acelerado quando as asas de borboleta da neta se fazem escutar bem perto de si.

Maria pousou com muita tranquilidade perto da avó e de Yatughuman.

Os três rostos daquela reunião ficaram iluminados com uma intensa cor dourada.


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