59 - GARRAS



Após um curto sono acordamos para a eternidade.

Teresa deixou-se ficar quieta, perdida onde os deuses a largaram.

Maria corre guiada pelo primo obediente. Os seus desejos são como ordens para o pequeno Luís, que a orienta tranquilamente até longe do reboliço da boda. São três da tarde e pouco falta para a hora certa da cerimónia. Os avós continuam desaparecidos e a vontade em lhes fornecer de novo ajuda é agora superior às suas reais capacidades. Procura um local para fugir. Quer escapar às novidades que carrega poderosas dentro de si, intensas e de difícil compreensão. Uma mente acentuadamente precoce e consagrada, umas garras de animal selvagem rasgam-lhe as pontas dos dedos que se tornam ameaçadoras e reais, tão reais como as dores que lhe acrescentam mágoas na memória. As imagens surgem novamente coloridas e o cinzento turvo que as desfigurava desapareceu tão rapidamente como surgira.

- Tu ainda não sabes querido Luís, mas o que se passa com os avós é algo de muito complicado. Desapareceram para longe daqui. Tinham muitas coisas para resolver entre eles, coisas já muito antigas, tão antigas que os nossos próprios pais ainda nem eram nascidos. Será complicado para os dois regressarem tal como daqui partiram, lá do lugar onde se encontram. Mais difícil ainda será explicar-te tudo o que tem estado a acontecer. Não me podes dar as mãos agora. Não te assustes, mas nasceram-me umas garras no lugar das unhas, melhor será correres à minha frente que eu sigo-te bem de pertinho!

Luís ficou pálido quando reparou no tamanho das garras de Maria. Tudo o resto na prima Maria se mantinha inocente, apenas aquele sinal lhe dava agora imagem da força interior que lhe reconhecia. Ainda bem que a Nana e a Marafona seguiam seguras nas suas mãos e não nas da menina, caso contrário teriam sofrido horrores ao serem trespassadas pelas garras afiadas da dona.

- Credo Maria, mas que garras tão gigantes! Deve-te ter doído tanto quando essas coisas afiadas te rasgaram as pontas dos dedos! Estás bem? Não queres ir até casa um bocadinho? Se calhar é melhor ires mostrar as mãos aos teus pais, não achas?

Nem pensar em dar conta de mais este estranho acontecimento aos seus pais, principalmente à mãe Valquíria, que neste dia tem andado num autêntico sufoco pelos piores motivos.

- Temos de correr rapidamente até à garagem e esperar que a grande anaconda alada me traga novidades do local por onde caminham os avós. Quando ficarmos longe de tudo e de todos talvez te possa explicar mais um pouco do que tem estado a acontecer. Não sei, querido priminho, se tu conseguirás entender metade daquilo que te irei contar, mas a tua ajuda e companhia têm sido muito importantes para mim. Sem elas dificilmente conseguiria dar o apoio possível aos avós e principalmente à avó Teresa. A tua protecção tem sido decisiva nesta viagem, e mais uma vez aqui estás a proporcionar-me todo o apoio que necessito. És um amor!

O Luís Miguel ficou muito corado, parecia que ia estoirar de tão vermelho que ficou. Já não queria saber dos pormenores dos locais por onde passeou Maria, nem que aventuras ou que histórias terão acontecido lá para onde se fez transportar. Saber pela prima, desta maneira, o quão importante tem sido para o andamento desta secreta missão, era tudo o que mais desejava de momento.

- Será que o MG do tio Sebastião ainda está no mesmo sítio, ou usaste o descapotável para viajares para os longínquos e misteriosos lugares para onde te fazes transportar? Olha que é capaz de estar com o depósito pela metade, lembras-te? Gastámos mais de meio depósito para chegarmos até Manaus, e quase outro tanto para chegarmos de Manaus até aqui!

Maria não ouvia as palavras do primo Luís como há instantes. As garras começavam-lhe a pesar nas mãos e nos braços, e o corpo de menina transfigurava-se através do crescimento invisível dos músculos que ganham tamanho e volume para aguentarem as suas novas companheiras. Escuta uma voz dentro de si, distante e quase imperceptível, depois líquida e melodiosa, como a voz do príncipe encantado das suas histórias de adormecer.

- Maria, querida Maria, é o avô Serafim! Esta voz que vais escutando é minha, apesar de te soar tão nova e desconhecida. Toma atenção ao que te vou dizer! Nunca deixes de fazer aquilo que o teu belo coração de menina te disser. É muito importante que ouças sempre a voz do teu coração e que acompanhes a tua avó no que resta do seu caminho. A luz que te guia é a mesma luz que nasceu no coração da tua querida avó Teresa, a tua coragem é ainda mais espantosa e extraordinária do que a dela. As duas terão de dar continuidade à história da nossa tribo nos próximos instantes. Terão de permanecer como um corajoso nó, firme e bem cerrado, como os desta corda que te deixo a ti como sinal da nossa eterna amizade. Guarda-a bem e mantém-na afastada de quem de te possa desejar mal. Utiliza a sua força sempre que necessitares de uma palavra amiga ou quando tiveres saudades minhas, das nossas conversas e dos momentos que passámos juntos a brincar. Enquanto a usares eu estarei para sempre vivo, presente no teu coração, estarei sempre presente junto da nossa tribo. A tua luz será sempre a maior das dádivas da nossa família. Agora que já começaste a perceber como tudo acontece, qual o lugar que cada um de nós ocupa neste jogo, apesar de tão nova e tão feliz, sabes melhor do que ninguém que nada mais voltará a ser como era dantes. Terás de transmitir um pouco da tua coragem à avó que permanece quieta a aguardar pela minha chegada junto à entrada de Timiminaloyan. Tens de lhe comunicar a novidade e fazer com que avance até a última das dimensões de Mictlan. Nada mais resta do que avançar corajosamente pela restante jornada. Essa é a única hipótese que tem de voltar a ver-te tal e qual tu ainda eras antes desta viagem.

Maria deixou de escutar a voz jovem do avô dentro de si. Ao colocar as mãos na testa para tentar perceber a temperatura, feriu-se ao de leve com um fino golpe das garras da mão direita. As bonecas suas amigas fecharam os olhos, muito aflitas, e até o primo Luís ficou espantado com a rapidez com que Maria lambeu o sangue das novas amigas e sorriu na sua direcção.

- Está tudo bem priminho, não te assustes! Foi só um pequeno golpe sem importância! Vou ter de vos deixar mais uma vez e por alguns instantes. A avó precisa outra vez da nossa ajuda. Tu vais ser um menino corajoso. Ficas aqui quietinho a tomar conta da Nana e da Marafona. Se demorar muito, vais junto do tio Sebastião e dizes-lhe que está tudo bem. É só isso que vais ter de fazer, e se o fizeres estarás a cumprir com a tua parte da missão como um fiel e insubstituível general.

Um profundo e pesado silêncio tomou conta da garagem enquanto o Luís se ia entretendo com a corda velha e gasta que a prima lhe colocou nas mãos sem explicação.

Aquele objecto era, seguramente, muitíssimo importante.


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