63 - LARANJA


Luís Miguel adormeceu por breves instantes no banco do condutor do MG. A corda onde sentara as bonecas da prima frente-a-frente está estendida do lado de fora da viatura. Da Nana até à Marafona vai a distância entre os dois eixos, cada uma delas foi colocada à frente do respectivo pneu do lado direito do automóvel, que se encontram paralelos ao portão da entrada da garagem.

O tio Sebastião veio dar com ele assim nestes preparos, com o banco do condutor a servir de colchão, levemente inclinado para trás. Maria voltava a não dar sinais de si. O pai parecia já estar à espera disso. No seu íntimo, sabe que a filha anda a tentar dar solução para algo de verdadeiramente importante. Estão para lá do seu entendimento as razões pelas quais foram coladas aos genes da filha estas funções. Alguns dos desenhos que andou a rabiscar à mesa durante o almoço estavam caídos perto da encenação com a corda e com as bonecas, dispersos em pequeninos molhos de três folhas, quase a tocarem a Marafona que o menino sentara no chão junto ao pneu. Sebastião apanhou-os. Deu conta da extrema complexidade de algumas das obras de arte de Maria. De quem terá ela herdado tanta imaginação, tanta criatividade e talento? Os vários personagens que habitam as folhas de papel assemelham-se a pequenas histórias aos quadradinhos, histórias de banda-desenhada com ilustrações, em alguns casos, muito elaboradas, talvez até elaboradas demais para terem sido concretizadas em tão curto espaço de tempo. Não restava a mais pequena dúvida que a filha tinha um verdadeiro talento por lapidar.

Abriu a porta da viatura. Ao fazê-lo o rapaz instantaneamente saltou do seu adormecimento para o lado de fora do carro sem sequer olhar para o tio. Pegou rapidamente nas bonecas e na corda e transportou-as em corrida desenfreada para fora do espaço da garagem sem permitir uma pergunta que fosse ao tio Sebastião.

Não lhe parecia nada vulgar que o menino andasse afastado de Maria. Acabaram os dois de sair há bem pouco tempo da tenda do restaurante. A filha não podia estar muito longe dali.

Tezcatlipoca tomou conta de todas as dimensões de Mictlan. A enfurecida divindade transporta na sua mão esquerda a faca com que procura também arrancar o coração jovem de Maria. Através dos poderes do disco espelhado sabe que a menina carrega no peito um coração como nenhum outro.

Quetzalcoatl depressa deu conta da rara nobreza contida no pequeno coração da menina Itzpapalotl. É a ele que se devem todas as tentativas de fazer chegar a bom destino aqueles que lhe poderão ser úteis no espaço e no tempo dessa vida. Este coração novo e honrado, mágico e singular, será uma oferenda inestimável para a forma humana do jovem deus guerreiro Tezcatlipoca. Deseja ficar mais e mais forte. Tem de conseguir o poder suficiente para roubar o astro rei, retirá-lo para todo o sempre da cúpula celeste da quinta criação da humanidade. O mundo ficará totalmente transfigurado. Os homens e todas as outras deidades serão destruídos e os que mesmo assim conseguirem resistir, permanecerão esquecidos numa silenciosa e absoluta obscuridade. Contudo, uma regra pouco conhecida concede a um qualquer mortal que o consiga derrotar num íntegro combate a possibilidade de ver um desejo concretizado, seja ele qual for.

Por agora, o senhor do espelho fumegante deseja resolver de uma vez por todas a ousadia desta senhora que, com a protecção inusitada de Xolotl, derrotou mais de uma centena de selvagens jaguares e ocelotes que lhe pretendiam despedaçar e dilacerar as carnes e os órgãos. Deveriam retirar-lhe o coração ainda vivo do peito, entregá-lo vermelho e fresco ao deus jaguar através do ritualizado festim que se pratica na escuridão de Teocoyolcualloya. Assim se deveria ter dado cumprimento à sua passagem pela sétima dimensão de Mictlan.

Uma dimensão alaranjada surgiu aos olhos de Teresa. A escuridão onde se tinha defendido galhardamente das investidas dos ferozes felinos foi transformada por uma intensa luz difusa em carregados tons laranja com que o deus jaguar pintou este cenário. Os corpos derrotados dos animais estão espalhados por toda a parte. Os troncos, cabeças, peles e membros desmantelados espalham ainda o sangue fresco da derrota pela alaranjada paisagem, temperando-a com um bafo ainda mais quente e medonho.

Tezcatlipoca terá de se manter atento aos estranhos poderes desta senhora.

Teresa foi capaz de se fazer transportar até Teocoyolcualloya, foi capaz de ultrapassar todas as anteriores dimensões e ainda fornecer a devida ajuda à alma abandonada do marido pelas cinco primeiras etapas de Mictlan. Foi capaz de vencer as terríveis privações do seu tempo de vida terrena, foi capaz de se atirar sem receio na direcção do imprevisto e do segredo, foi capaz de sentir como ninguém a vontade em permanecer unida à sua tribo, às suas filhas, aos seus netos e em especial à sua menina coração-de-sonho, foi capaz de receber e ultrapassar as dores provocadas pela notícia da morte do marido, foi capaz de aceitar todos os auxílios corajosamente e sem derramar uma única lágrima de orgulho, foi capaz de aprender todas as lições que esta demanda lhe tem ensinado, escutar em si novos poderes e transformar-se como Maria numa guerreira de garras de obsidiana e coração de heroína. Foi assim, já metamorfoseada, que arrasou com todos os ferozes animais que nesta sétima dimensão lhe pretendiam rasgar o peito, dele retirar o coração palpitante e com ele se alimentarem. Xolotl foi um seu improvável aliado. Deuses a lutar ao lado de humanos não são de todo acontecimentos que Tezcatlipoca possa aceitar. O guardião irá pagar bem caro esta ousadia!

O vento ajuda, o tempo está de feição. Os restos de todos os animais que por ali se encontram espalhados erguem-se no céu laranja, aglutinam-se numa imensa massa rodopiante que cresce à medida que mais pedaços destroçados dos seus corpos se juntam ao seu redor. Duas gigantescas patas de jaguar surgem da cúpula laranja de Mictlan. Dirigem o bailado rodopiante de todos estes pedaços. O céu modifica-se, as nuvens reúnem-se para formar a cabeça do deus jaguar que rapidamente engole a massa rodopiante feita com os destroços dos seus filhos selvagens. Num estrondo incapaz de se descrever, o deus guerreiro desce dos céus na sua forma humana, aterra em frente a Teresa, que se mantém com um olhar ausente e com as afiadas garras levantadas na direcção do grande jaguar. Assim permanecem por breves instantes a comunicar um ao outro as suas vontades.

Xolotl entendeu que a sua missão está consumada. Sem que nada mais ali o possa prender, sai veloz daquela dimensão laranja rumo à porta de entrada de Mictlan. Teresa e o deus guerreiro não procuram impedi-lo.

Esta é uma estreia para o grande e poderoso Tezcatlipoca. Nunca antes o seu poder tinha sido posto em causa. Nunca antes tinha sido colocado frente-a-frente com um vulgar ser humano que o enfrenta altivo e com imensa ousadia. Nunca antes o adversário permanecera tão confiante na sua intimidante presença. Nunca antes se sentira assim perante alguma coisa ou alguém, como se um pequeno grão de dúvida crescesse em si com a novidade da situação.

Não existe nada tão excitante como um bom combate, como um bom e sangrento conflito. Olhou instintivamente para o centro do seu espelho fumegante e nada dele se viu ali reflectido. O rosto da poderosa divindade não aparecia no mágico espelho de obsidiana. Os tempos futuros não davam conta da sua presença. Hesitou com a pata esquerda já levantada bem alto. Travou o braço que levava o punhal do sagrado ritual iniciático antes de violentar o peito desprotegido de Teresa.

Sem margem de manobra, sem ter dado conta do acontecimento, o grande Tezcatlipoca sentiu pela primeira vez o sumo do seu próprio veneno a ser-lhe cravado violentamente no pescoço. As afiadas garras da guerreira aproveitaram esse momento de fraqueza e atravessaram-lhe a cabeça desde a mandíbula até ao topo do crânio. As poderosas garras foram depois ajudadas por uns braços tão poderosos que o deus jaguar foi projectado na direcção da cúpula desta dimensão, espalhando pelos céus de Teocoyolcualloya milhares de milhões de jaguares ensanguentados. Todo Mictlan se transformou em tonalidades de um laranja avermelhado, e por mais de três anos terrestres caíram dos céus os filhos selvagens de Tezcatlipoca, espalhando assim a notícia aos deuses que o grande senhor do espelho fumegante foi derrotado por uma vulgar criação dos próprios deuses.

Teresa venceu esta dimensão de Mictlan, venceu os deuses, venceu o medo, venceu a morte e repensou toda a sua vida.

As notícias que trás desta passagem por Teocoyolcualloya são bem mais importantes do que a vitória obtida. A nova cor do seu corpo é o mesmo tom laranja que vestia os selvagens jaguares que por lá combateu e derrotou.

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