60 - LÂMINAS


O conforto não tem morada, não tem razão neste lugar.

Teresa foi empurrada por um braço. Sentiu imediatamente debaixo dos pés descalços a dor do aço cortante a ferir-lhe os calcanhares, os tornozelos e os dedos até que a frescura do líquido vermelho lhe acalmou as fortes dores experimentadas. A luz não chega até aqui. Um castigador e demente Xolotl permanece sentado nesta dimensão de Mictlan num trono de impaciência. Entretém a raiva e a loucura atirando ao desbarato, de maneira violentíssima, nuvens de flechas que recolheu de todos os guerreiros que ficaram esquecidos nas diferentes dimensões de Mictlan.

Teresa avança com total desconhecimento dos caminhos que percorre. Os pés dormentes, cansados, feridos, arrastam-na vagarosamente até que a primeira nuvem de flechas lançadas pelo gémeo lhe passa rasante por cima da cabeça. Com o ruído de milhões de insectos voadores a assombrar-lhe a caminhada, Teresa atirou-se instintivamente para o solo para se proteger da apoquentada situação. O corpo foi perfurado pelas pontas de flechas perdidas e partidas que forram os caminhos de Timiminaloyan. As mãos, o rosto, os braços, o peito e os joelhos sofreram mais do que qualquer outra parte do corpo. As afiadas pontas de obsidiana dilaceram sem descanso a pele e a carne. São lâminas cruéis e incansáveis. A qualquer movimento praticado por Teresa abre-se de imediato uma ferida no seu corpo. Ao pisar o solo, ao levantar-se, ao seguir dobrada e agachada, ao correr para evitar as flechas que silvam no escuro, ao saltar para evitar as pontas das que mais por baixo vão voando, ao tapar a cabeça para tentar promover protecção aos olhos e ao rosto, qualquer dessas coreografias é paga com a dor infligida por mais flechas esvoaçantes de lâminas cortantes.

Ceder a este martírio é algo que não ousa fazer. Seria o final da jornada. Este caminho é feito com o manto de dor às costas. As ordens são para avançar, a todo o custo, na direcção da saída desta dimensão, uma onde a escuridão é benevolente, pois mantém a imagem das chagas e do sofrimento afastadas do olhar do penitente.

Por cada pequeno centímetro de distância percorrida as dores são acrescentadas de maneiras redobradas. Algumas flechas já resvalam nos ossos de Teresa que se tornaram visíveis por deles terem sido arrancados todos os pedaços de pele, de carne, de músculos de artérias e de veias que os cobriam. E a avó continua em pé, avançando lentamente e estoicamente no meio de tanto silvado, no centro de mais uma nuvem invisível de flechas cortantes lançadas ao desbarato pelo insano Xolotl, majestosamente refastelado no seu trono de guardião de Mictlan.

Vai continuar a fazer deslocar o corpo despedaçado e sujeito a tanta dor, a tanto sofrimento, ao mais cruel dos atentados pois a vida permanece assim neste inalterável pavor. Xolotl não pára de fazer rodopiar as flechas, não pára de fazer crescer as nuvens invisíveis que destruem o que resta do corpo de Teresa, e o ar escuro, negro, começa a pesar tanto que só a definição de silêncio, uma sensação de humildade tão incomensurável, lhe indica que não está ali sozinha.

Todo o tempo deve ser usado para apreciar o local onde estamos nesse preciso momento, nesse exacto e preciso momento. Separam-me de quem sou, do que ainda sou, mas os sonhos não mos despedaçam. Não tenho medo. O coração ainda bate e bate mais depressa, mas tenho de passar o testemunho, este testemunho de coragem para que Maria saiba que nada nos despedaçará. Nem que me restem apenas os ossos que sentem já estas setas afiadas a fustigá-los. As derrotas são sempre momentâneas, a dor que agora experimento é um mal menor quando comparada com a formidável tarefa que será fazer-me transportar até ao fim de Mictlan. Eu, a mais improvável das desconhecidas que por esta dimensão ousou arrepiar caminho. As dores que aqui se oferecem não são de todo suportáveis para Serafim. Sei bem aquilo que é capaz de suportar, e aqui, claramente, a vitória será dos deuses. Percebo agora o porquê das suas incontroláveis hesitações. Em Timiminaloyan enganamos todas as fúrias que nos passaram pela alma, despojamo-nos da arrogância e da majestade de outrora para nos redescobrirmos, para reencontrarmos as verdadeiras forças de quem, na realidade, já fomos. É assim que deixamos de sentir dor. Os ossos são tudo o que resta de quem somos e, estranhamente, conseguimos caminhar com esta lembrança arquitectónica do nosso ser pela escuridão do lugar. O sofrimento ficou perdido algures, extinto como as nuvens invisíveis que deixaram de me fustigar.

Maria trazia as mãos no ar, ameaçadoras. O pescoço de Xolotl era tudo o que desejava abraçar. Um ruído de fundo, como uma sirene, trouxe à escuridão uma carregada humidade. Um cerrado nevoeiro invadiu o ar e brindou Timiminaloyan com uma brisa fresca. O trono onde Xolotl se abrigava levantou voo colocando-o nas alturas.

Maria perdeu de vez a hipótese de cravar no guardião as suas novas amigas.


A escuridão tomara conta das vontades de Maria. Não aceita que Xolotl tivesse utilizado a avó para se vingar do sucedido com o irmão. Não é esse o sentimento que lhe determina o empenho. Se na sexta dimensão o sofrimento e as fracturas são de uma crueldade ilimitada para quem o experimenta, não se comparam ao efeito que as marcas das suas garras provocarão no guardião. Procura por Xolotl como um igual, sabendo que são muitos os erros provocados na tarefa, apenas porque lhe dá um prazer imenso poder usar luxuosamente essa autoridade. Maria vai dar-lhe a provar do mesmo veneno que tanto gosta de aplicar ao desbarato, vai dar-lhe a provar uma nova noção do seu espectacular poder, mas como alvo.

No meio da escuridão, ainda o trono feito de pedaços de ossos estilhaçados mal tinha levantado voo, um violento puxão travou-lhe a fuga caindo Xolotl dele abaixo. Um salto vigoroso do enraivecido senhor das trevas colocou-o na correcta posição antes de embater no solo. Assim que as suas patas de cão sentiram o solo firme foram imediatamente cortadas por umas garras fortíssimas, muito afiadas e extremamente certeiras. Gotas de um veneno paralisador fluem para o interior do sistema nervoso do embrutecido guardião. A sua fúria bestificada torna-se uma aliada de Maria, pois faz com que o veneno acabe por actuar de maneira bem mais rápida do que aconteceria se este se mantivesse sereno. As cores que lhe pintam os anseios são agora iguais às cores dos anseios de todos os que habitam nos ossos roubados por si e por Quetzalcoatl a Mictlantecuhtli. Uma espuma de raiva e de latência sai-lhe pela boca à medida que o veneno vai fazendo o seu trabalho. O corpo imenso cai desamparado no chão de Timiminaloyan, no exacto lugar onde milhares de afiadas pontas de obsidiana aproveitam a oportunidade única para despedaçarem o corpo de um deus.

Maria cravou vagarosamente, vezes e vezes sem conta, as suas novas amigas pelo gigante num ritual feroz mas controlado. Ali está à sua inteira mercê o guardião de todo Mictlan, subjugado e vencido ao poder da sua vontade, das suas garras e do seu poderoso veneno.

Aqui me tens ó pequeno animal grotesco, uma menina humana tão frágil transformou-te nesta insignificância. Esta realidade afecta-te mais do que as dores dos cortes e do veneno. Foste incapaz de fornecer auxílio ao meu avô Serafim, antes tiveste como primeira vontade despedaçá-lo por completo com uma muralha de gelo do tamanho da galáxia, o mesmo gelo cortante que acabou por trucidar o teu irmão Quetzalcoatl. A minha avó forneceste mais nuvens invisíveis de flechas cortantes do que a qualquer outra alma que antes dela atravessou as profundezas desta dimensão. O teu orgulho e vaidade necessitavam deste banho de humildade, e nunca se é deus demais para sentir o poder da suprema divindade através destas reviravoltas vigiadas. Ficas a saber que foi o teu próprio irmão que me anunciou este destino, que me facultou e ensinou as primeiras maneiras de o controlar, de o moldar, de não o renunciar nem recear. E mais não te digo que não o mereces. Vais permanecer por aqui esquecido pelo tempo que eu considerar seguro, até que algum sinal me diga que aprendeste a lição. Caso contrário, não te surpreendas se permaneceres por aqui por toda a eternidade. Agora vou-me, pois tenho de comunicar algo muito importante à avó na entrada de Teocoyolcualloya, a sétima dimensão de Mictlan.

Luís Miguel brinca com a corda que a prima Maria lhe deixara como o mais precioso dos tesouros. Colocou as bonecas sentadas em cima do seu respectivo nó, uma em frente à outra, afastadas pelo comprimento da corda. Sentia-se impaciente e amedrontado. Tinha de permanecer ali como um verdadeiro soldado com a tarefa superior de fornecer protecção à prima. Tinha de manter aberta, em segurança, a porta que permite a saída e o regresso ao mundo real, o mundo onde todos aguardam o retorno de Teresa e Serafim à boda da filha Valquíria.

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