58 - ETERNIDADE


Serafim foi atirado violentamente para a entrada de Paniecatacoyan. Assim que o seu enfeitiçado espírito sentiu as primeiras rajadas desta dimensão em forma de vapor, os seus segredos ficaram despedaçados em partículas delicadas e muito difusas.

Deixou de sentir. O corpo ia voando livremente, sem peso e sem qualquer impedimento.

Serei capaz de sorrir sem poder ver, sem poder caminhar? Ter de acreditar neste destino que me guia, que me guiou e que me continuará a guiar pelos caminhos por onde avanço? Foi grande a vontade em permanecer esquecido onde Maria me foi resgatar. É-me tão difícil perceber a importância que a minha vida tem para a menina. Para mim, esta já deixou de ter valor há muito tempo. Um disfarce é o que eu sou, ao ter sido incapaz de dar real avanço às minhas sensações, de ter mantido escondido de todos os meus verdadeiros pedaços, numa espécie de baú de enfado e de preguiça. No peito bate este relógio gasto e estragado, que nunca tive vontade de afinar. Como é possível ter apreciado tanto os passos da morte que ia escutando pela madrugada, que sentia ao acordar, que me acompanhava ao dar a caminhada matinal junto à costa, que se sentava comigo e avançava pelas reuniões de tédio e de castigo, que me assobiava irritantemente enquanto conduzia, que sempre fui escondendo de Teresa quando me perguntava como me sentia.

Aqui tudo é sereno e perpétuo. As horas não existem, o tempo não faz sentido. As dores são de todos e não são de ninguém. Não existe ar, não existe som, não existe nada e tudo existe nesta vastidão de sentidos e pensamentos. As ideias não provocam ruído nem possuem forma, mas a luz que irradiam é intensa e bem real, pelo menos para mim, pelo menos para o meu coração. E Teresa que nunca deixou de me colorir o caminho, tamanha a força do destino que parece habitar nela, o mesmo destino que me trouxe até aqui, que me espera do outro lado desta passagem, que me irá segurar as lembranças e acompanhar na restante viagem que falta ainda percorrer, esta misteriosa e perpétua jornada. São intensas as forças que se deleitam a arrastar e a desmaterializar as minhas lembranças por aqui. As palavras surgem na mente, ou no que resta dela, totalmente ingovernáveis. O sangue palpita nas fontes e no rosto como um tambor, dando violentos sinais, transportando caudais intensos desse rio de vida. Todas as lembranças do universo que fomos resolveram subitamente ser carregadas até ao cérebro num breve instante. Vão rebentar se assim continuar o fluxo rebelde destas vagas vermelhas. Já não me recordo de muita coisa. Sei que me esqueci de Teresa vezes de mais para ainda haver remédio que sare tantas feridas. Sei que me esqueci do que desejava para mim, daquilo que era o meu verdadeiro segredo, e que me aventurei por estradas que não eram de todo as desejadas. Descobri depois outros atalhos que me foram serenando as mágoas e as dores, as muitas terras e os outros caminhos que ajudei a percorrer, os gigantescos rios feitos de lágrimas que vi e que apaziguei, forças escuras e enraivecidas que consegui ir adiando e que ajudei a combater. O que nunca imaginei ser possível, tornei possível, fiz acontecer. Pude tocar vidas de outros e transformá-las como se fosse um pequeno deus. Afinal só desejava que muito desse poder fosse transformado em tempo, em todo o tempo perdido da minha vida escondida e esquecida. Queria que me fosse dado para sempre o tempo, como água de uma fonte inesgotável. Vejo agora que não é assim que o segredo acontece. Passamos por estas etapas como areia, como água, como vento e como dor feita de luz. Aqui, nesta dimensão, tudo se torna evidente e de fácil compreensão. Um sofrimento e uma tristeza imparável passam por nós de maneira crua e muito seca. Descobrimos como tudo acontece, o que é, de facto, extremamente doloroso. É de uma complexidade extrema a compreensão deste fenómeno. A vida toda, a criação, quem fomos e o que seremos, a matéria de que são feitas as estrelas, os átomos que nos pertencem, os que acabaram de nos ser retirados, as lembranças, os tempos que já passaram e os que estão para acontecer, as imagens, os sons, os sabores, as recordações, os silêncios, todos os nascimentos e todas as mortes de todos os que já fomos e seremos, os choros de alegria e de tristeza, as dores, os horrores, os trágicos momentos, as chagas, os castigos e maleitas, os cansaços, os padecimentos e os pedaços de nós que partilhámos e os que regressaram a nossas casas, as saudades, as amputações e as raivas, os amores e o sabor a mar, a sal e a suor, o peso de tantas imagens a passarem loucas e vertiginosas, depois tranquilas, pausadas, aveludadas, o suspiro dos meus netos, os seus berros a acordarem-me do sonho nas manhãs de Verão, os beijos das meninas ao chegar de viagem, o corpo virgem de Teresa entregue na inesquecível manhã do meu décimo nono aniversário, as gotas da primeira chuva fresca de Outono a molharem-me o rosto na casa de Nisa, a imensidão da nossa terra vista do espaço, a infinita pequenez do que representa vê-la perdida como um pequeno grão de areia em praia de galáxias infinitas, os deuses a gozar a nossa condição, eu a sentir o peso da divindade ao manter firme o leme da barcaça da existência em minhas mãos, olhar assim o universo infinito, abandonar mais uma vez esta condição para voltar a ser pássaro, urso, cavalo, insecto, pedaço de vento, árvore, fogo do campo, veado, homem ou mulher, planeta, galáxia, universo ou memória de sangue e de vida, mais uma vez e as vezes que o destino traçou no início do que nunca teve fim.

Primeiro, Serafim sentiu a dor terrível das lâminas cortantes da lua de metal a fazerem com que o seu corpo confessasse o cansaço dos anos já passados em cena.

Seguidamente, sentiu uma fúria incontrolável a rasgar-lhe o peito e até desse padecimento sentiu saudades.

A maior das dores foi-lhe aplicada imediatamente, cruel e intensa, inimaginável, como se fosse ele o pai de todos os seres vivos e tivesse que assistir à furiosa e lenta agonia dos seus filhos a matarem-se uns aos outros, até que o último deles caiu liquidado a seus pés sem verter uma única lágrima de remorso.

Ficou depois sozinho a sentir todo o frio nas suas carnes vivas como lhe destinaram os deuses, desmascarando-lhe a coragem e fazendo-o chorar verdadeiras lágrimas de sangue.

Os ventos aumentaram de intensidade e arrancaram-lhe furiosamente as suas últimas lembranças. Serafim foi atirado violentamente para o centro tempestuoso de Paniecatacoyan, para o mais escuro centro da sua perpétua existência.

Sem aviso, todas as suas veias rebentaram. O corpo de Serafim foi trucidado em mil milhões de pedaços transformando-se em milhares de constelações estreladas.

O corpo despediu-se, as memórias desligaram-se e o vento cortante engoliu tudo o que dele tinha existido sem nenhum esboço de resistência.

Por esta altura já nada existe de Serafim.

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