56 - CINZENTO

O Luís Miguel vem a correr como louco. Tinha ido buscar a Nana e a Marafona que o senhor guarda Jacinto levara como testemunhas do desaparecimento da prima.

- Maria, Maria, olha quem trago aqui comigo! Tinhas razão. A mãe Joana já as tinha ao pé de si para tas trazer. Continuam um bocadinho sujas, tal e qual eu as encontrei junto ao portão da garagem. Mas não as metas na máquina como da outra vez, senão dá outro chilique à tia Valquíria. A mamã está a falar com o senhor polícia no salão. Parece que ele te quer ver. Acho que estava a pedir autorização para te fazer umas perguntinhas, mas não tenho a certeza! São um bocadinho chatos estes senhores polícias. Querem saber tudo e mais alguma coisa. Vê lá tu bem que até levaram as bonecas para ver se elas lhes contavam alguma coisa a teu respeito. Toda a gente sabe que a Nana e a Marafona só falam contigo e com mais ninguém, não é Maria? Quando me perdi na floresta, mal tu chegaste e as atiraste para o banco de trás do carro do tio Sebastião, eu também ouvi as risotas delas. Eu sei que não foram palavras, mas não fiques a pensar que só tu é que as consegues ouvir falar ou a fazer outros barulhos com a boca. Eu também acredito que elas falam e riem e que, quando querem, são bem capazes de ser gente como nós. Mas para os senhores da polícia, isso é que não! Eles lá querer, queriam, mas a Nana e a Marafona são muitíssimo inteligentes! Saem às donas, não é Maria, o que é que tu achas? Estás a ouvir? Ouviste alguma coisa do que eu estive para aqui a dizer? Maria! Maria! MARIA…

A menina ainda estava muito perturbada com as novidades de Mictlan. São exigências cruéis e muito desgastantes as que lhe vão sendo pedidas. Num curto espaço de tempo, entre um creme de espargos e uma deliciosa sobremesa de gelado de frutos silvestres, teve de evocar Chalchiuhtlicue para que a sua grande amiga alada pudesse ser reconstituída e fortalecida quer em corpo quer em espírito. Teve de ser suficientemente corajosa para embrenhar a consciência nas mais escuras dimensões de Mictlan, justamente no centro de Paniecatacoyan, para dar força e alento a uma Teresa desorientada e perdida, desfragmentada em infinitas partículas de luz, quase sem ânimo para permanecer fiel á causa da demanda. Teve de se refazer desses trabalhos para conseguir decifrar todo o estranho e complexo código de Serafim, que permanecia perdido algures nas geladas e desérticas passagens de Izteecayan. A maior das suas vitórias estava na eminência de ser obtida. Carregou de renovadas esperanças, com inusitada mestria, a alma abandonada do avô Serafim. Essa tinha sido, seguramente, a mais extenuante das tarefas que conseguira realizar até ao final desta atribulada manhã de casamento.

Não se estranha que um ar de cansaço tomasse conta das rosadas faces da menina. Estas foram tarefas dignas de deuses, não de um franzino corpo de menina valente. Mesmo sabendo que terá de se manter alerta para as notícias que lhe vão chegando de Mictlan em forma de desenhos mágicos, nas espantosas e criativas personagens que vai rabiscando furiosamente no pequeno bloco de folhas pautadas que lhe foi dado de presente, pequenos tremores comunicam-lhe sinais de fadiga. Ouviu, muito distantes, as palavras de Luís Miguel, como se o primo estivesse fechado dentro de algum baú de carvalho envelhecido.

- Maria, mas afinal de contas, o que é que se passa contigo? Estás tão branquinha! Até consigo ver a cor do sangue a correr nas veias do teu pescoço. Se calhar o gelado está estragado ou a sopa estava podre? Diz qualquer coisa prima, vá lá! Até as bonecas começam a ficar assustadas.

A menina segurou com força a mão esquerda do primo. Por um brevíssimo instante sentiu o corpo a dar de si. As imagens ficaram baças e desfocadas. Apenas a mão do menino lhe ia dando uma morna ligação à realidade. Quanto mais as sombras tomavam conta de Maria, quanto mais apertada ficava a mão do Luís Miguel.

- AUU! Estás a magoar-me Maria! O que se passa contigo? Se a tua ideia era assustar-me, já conseguiste! Tia, olhe a Maria! Está a magoar-me muito a mão e não a larga.

Valquíria deu conta do reboliço que se começava a fazer sentir mesmo ali ao seu lado. Instintivamente segurou a mão esquerda de Maria que se encontrava tão fria que se amedrontou.

- Credo Maria! Estás gelada! Acabou-se o gelado, não comes mais! Anda, vamos para dentro de casa. Temos de te aquecer um bocadinho. Deves estar a ficar com alguma pontinha de febre. E estás tão pálida. Mas por onde é que tu te andaste a esconder rapariga? Só espero que não te tenhas espetado nalguma coisa ferrugenta ou picado nalguma espécie de cardo venenoso. Vamos já tirar-te a febre para ficarmos descansados.

O Luís ficou preocupado com a forma insegura como Maria se colocou de pé. Ao largar a mão da mãe, agarrou todas as folhas que já tinha desenhado debaixo do braço, juntamente com a caneta que a tia Joana lhe tinha emprestado. Segredou baixinho ao Luís para ele a levar consigo até à garagem. Para que ele dissesse à noiva que não tinha nada com o que se preocupar. Era só uma tola brincadeira entre primos!

- Ó tia, não está a ver que a Maria está a brincar! Ela pegou na taça do gelado e andou a passear com ela pelas mãos e pela cara para se refrescar. É para fazer de conta que é o Yeti, o abominável homem das neves. Eu sou o caçador secreto de abomináveis, e vou atrás deles até onde esses monstros peludos me levarem.

E ao dizer estas palavras, pegou numa Maria atordoada, arrastou-a carinhosamente daquele cenário e correram os dois como puderam para longe dali, tal como Maria lhe tinha pedido.

- Nós voltamos já tia Valquíria. Vamos só ali ao miradouro contar à Nana e à Marafona como nos podem ajudar a encontrar Yetis! É só a brincar tia Valquíria, só isso e nada mais.

Mariazinha encheu-se de orgulho deste seu valoroso general. Acenou afirmativamente com a cabeça, agarrou ainda com mais força as folhas do seu bloco e a caneta com que elaborava os espantosos desenhos de Mictlan e deixou-se levar pelo primo, vislumbrando apenas sombras e manchas acinzentadas à sua frente, como se o mundo, subitamente, tivesse sido pintado com todas as tonalidades possíveis de cinzento.

- Olha lá Sebastião, tu não dizes nada? Os miúdos parecem doidinhos e tu ficas aí impávido e sereno a comer o teu gelado como se nada de anormal se passasse! Não te parece estranho este comportamento da menina? Se calhar sou eu a ficar já completamente louca e arreliada. Não tenho a força da mamã, nem de Joana, e acho sinceramente que de todas as mulheres desta família, ainda é a tua filha quem parece ter herdado a maior fatia de energia dos Carvalho e Melo. Parece eléctrica! As pilhas não se gastam à rapariga! Só pode sair à mamã, com certeza!

Sebastião parecia ter as mãos e os pés atados.

Há muito tempo que ele sabia ser Maria uma criança excepcional.

Aos serões, antes de dormir, lê-lhe e relê-lhe vezes sem conta as mais fantásticas histórias de adormecer. No final de cada leitura, a menina explica-as ao pai com uma sabedoria que não é deste mundo. Era um segredo só deles, que Maria lhe tinha pedido para guardar. E o pai assim o fez.

Muitas vezes, ao sonhar, Sebastião era transportado milagrosamente para dentro daquelas histórias mágicas que se perpetuavam, eternamente, as vezes que a filha desejava, até que o sono viesse finalmente tomar conta do seu corpo contente.

Sebastião sabia que a filha não podia ser impedida de avançar em direcção ao seu destino. E o destino de Maria passava, naquele momento, por correr dali para fora ajudada pelo Luís na procura de mais um segredo escondido bem fundo no seu coração.

- Sabes Valquíria, nem sei bem como te dizer. Eu acredito que é melhor para todos deixá-los brincar à vontade, deixá-los entretidos com as suas brincadeiras. Ao fim e ao cabo, eles parecem ser os únicos que sabem exactamente o que fazer neste dia tão especial. O melhor mesmo é dar-lhes espaço, deixá-los em total liberdade. Vais ver que nos acabarão por surpreender!

Valquíria viu os meninos de mãos dadas a correr em direcção ao grande plátano do jardim. Sentiu vontade em também ela correr atrás deles, atrás das suas bonecas, que bailavam alegremente nas mãos do sobrinho Luís com um aberto sorriso nos lábios.


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