20 - PERDIDO


Descrevia uma suave curva para a direita sem que o peso do seu corpo provocasse alteração significativa ao equilíbrio da descida. O rio embala a viagem das duas senhoras, transportando-as a seu bel-prazer para onde muito bem entende.

Serafim encontra-se perto da fresca relva que atapeta o jardim. Sente-lhe todas as fragâncias e agradece o facto de ser esta a rede que amparará a sua queda. Antes de cair no seu regaço, deu conta do bonito lugar por onde passeiam Teresa e Maria.

A primeira preocupação foi com a mulher, que não tinha conseguido manter perto dele durante a queda. Depois, ao perceber que se encontrava na companhia de Maria, a sua menina coração-de-sonho, deu descanso aos receios e apaziguou a ansiedade que começara a construir alicerces no seu carácter.

Não encontrou a força necessária para se conseguir fazer transportar até junto delas.

Os olhos já estavam bem fechados por esta altura. O corpo já não sentia. Tudo tinha sido transformado em som, em acordes musicais construídos e atacados por muitos timbres agudos, intensos e fortes.

O coração vibrava suavemente. Tudo se mantinha na mesma tonalidade azul esbranquiçada, com toques de cinza claro muito luminoso.

O corpo nú.

Todas as roupas há muito tinham deixado de lhe promover a devida protecção. Isso não fazia já qualquer sentido.

Levantou-se lentamente.

Ao longe consegue vislumbrar as paisagens cada vez mais pequenas por onde navegam Teresa e Maria. A distância afasta-o definitivamente da possibilidade de chegar até elas.

Esboça um pequeno adeus, um pequeno adeus de até já, até daqui a pouco.

Não sabe onde se encontra.

Os pés molhados.

Vai cambaleando pela beira de um lago rodeado por pequenas praias de pedras e seixos, onde ninguém se consegue deitar.

Sente-se só.

Uma solidão muda que lhe pesa por todo o corpo como se este fosse feito de toneladas de chumbo.

Avança na solidão desta praia de águas paradas. A vontade em avançar é bem mais forte do que a de se deixar ficar por ali quieto, expectante.

Uma luz surge intensa no céu, forte, em frente a si, como um pequeno sol um pouco acima da sua cabeça.

Na mão esquerda transporta uma corda embelezada por dois nós, um em cada ponta.

Do seu lado direito, junto à praia, mais ao fundo, dá conta do plátano que viu cresceu toda a sua vida no jardim de sua casa. O mesmo onde os netos brincam hoje, abrigados à sua sombra.

Tem de ir até lá falar com ele. Talvez este lhe possa dar alguma pista sobre tudo o que se está a passar com a sua realidade, tão fortemente alterada.

Foram muitas as tardes que passou junto a ele, muitas as confidências e os segredos partilhados a dois, muitos os conselhos obtidos, as esperanças renovadas, as brincadeiras partilhadas no âmago dos seus troncos e ramos.

Pode ser que este honrado ser vivo, humildemente, lhe dê algumas respostas, forneça alguma serenidade, algum consolo ao espírito cada vez mais inquieto de Serafim.

Pode ser que assim aconteça. Pode ser!

Ou talvez não.

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