17 - TRIBO



Um silêncio perturbador corta a boda de Valquíria e Sebastião. Serve-se frio e atinge todos os convidados de igual forma. Todas as dúvidas iniciais que traziam os noivos espectantes, foram trocadas por esta estranha ansiedade que deixou os presentes na cerimónia mudos de palavras e de espanto. Maria estava a ser procurada por todos os locais da boda. Luís Miguel ficou aterrorizado com o desaparecimento da prima, tanto mais que tinha sido ele a disso dar conta quando a sentiu pela última vez tão conversadora ali bem perto de si. E agora não estava a jogar às escondidas! Luís recorda bem as últimas palavras que ouviu da boca da prima.

- Venho já Luís, vou ali ter com a avó para a trazer de volta ao casamento. Não te assustes, pode ser que demore um bocadinho. Até já!

Sebastião estava destroçado. As mulheres mais importantes da sua vida estavam a sofrer desde que a manhã deste dia de sonho se levantou. Valquíria não sabe dos pais, não sabe da filha. Sebastião corre desalentado por entre os presentes que também procuram a menina em todos os recantos perdidos do imenso jardim, nas escadas junto à valésia que dá directamente até à praia, onde já caminham mais de meia-dúzia de convidados a tentar perceber se Maria teria caminhado por sobre a areia, se por ali existia alguma indicação da sua presença.

No rio, agora mais composto, a corrente serenou o suficiente para trazer calma às senhoras. Teresa e Maria estavam encharcadas mas felizes. Os estranhíssimos acontecimentos que as transportaram até àquela situação continuam bem presentes nas suas memórias mais recentes.

- Avó, estou tão contente por te ver! Estávamos muito aflitos lá em casa desde que tu e o avô levantaram vôo e desapareceram no céu levados pelo tapete de relva! Ninguém consegue explicar nada do que se está a passar, avó! Ninguém!

Teresa abraça com todo o carinho o corpo molhado da neta, sacudindo-lhe os longos cabelos, servindo-lhe toneladas de amor. A pequena embarcação segue rio abaixo muito vagarosamente, permitindo que a extensão daqueles momentos se vá perpetuando sem palavras, só em pura amizade.

No local da boda vivem-se momentos de angústia. Não se consegue arranjar nenhuma justificação plausível capaz de justificar tais acontecimentos.

Os momentos de estranheza possuem sempre esta cortante e insinuante carga de irreal. Entram-nos pela porta dentro sem aviso. A realidade transfigura-se numa espécie de pesadelo trágico onde todos os outros que não nós se transformam para provocar um acréscimo de terror a essa insensata fuga do real.

Valquíria ia interpretando esta alteração no comportamento da sua manhã de sonho como um claro sinal de aviso. As dificuldades que a vida vai semeando são tamanhas, são tão fortes e complexas, que os receios do seu futuro como senhora casada não parecem fazer agora qualquer sentido. O secreto poder da vida, que uma após outra nos vai colocando à frente barreiras a ultrapassar, é de tal forma perfeito que as dúvidas da nossa insignificante existência são autênticos paradigmas na construção da pessoa em quem nos vamos ainda transformar.

Encontrar Maria e os pais é tudo aquilo que deseja. Vivos, de saúde, com ou sem explicação para todos os factos que deram origem ao seu desaparecimento. Nada disso tem importância. Apenas o seu rápido regresso tem de acontecer para que a loucura não tome definitivamente conta de si como a luz do alvorecer.

Loucura! É uma perfeita loucura o que se vai passando neste casamento. Nada faz o mais pequeno sentido. Carpetes relvadas que se erguem nos céus como tapetes voadores, suficientemente fortes para conseguirem carregar pessoas e viaturas, que resolvem transportar, sabe-se lá até onde, Teresa e Serafim, num rápido e acelerado vôo para bem longe do local da boda da filha. E esta estranha novidade do desaparecimento de Maria que, segundo o primo Luís, foi ter com a avó Teresa sem deixar rasto? Onde estarão todos neste momento?

Num passado não muito longínquo, as viagens da mente eram muitas vezes partilhadas pelos diferentes elementos de um grupo ou de uma tribo. A estranheza desses passeios, tudo o que neles pudesse trazer ou dar luz sobre quem eram, onde estavam e para onde seguiam, eram depois por todos discutido. Tentava-se dar algum entendimento pela leitura dos caminhos assim percorridos e a antecipação dos que ainda estavam por percorrer.

O início deste vôo começou quando a surpresa da chegada do revitalizado Cadillac de Ville foi demasiado forte para o já gasto e cansado coração do avô Serafim. As imagens que a partir de então começaram a surgir na sua mente alteraram toda a realidade do momento, em fugazes e intermitentes flashes luminosos. O tempo desapareceu, desagregou-se em si de tal forma que deixou de fazer qualquer sentido. Tudo o que a partir daquele instante passou a acontecer só tinha lugar na sua realidade, no seu próprio universo, onde nada do que até então se estava a passar podia ter razão para existir. Os seus olhos acompanharam o peso da queda. Caíram na relva fresca com uma vontade inabalável, acompanhando o corpo de Serafim como elementos inseparáveis da sua tribo. Nada de viajar sózinho. Nesta viagem todos os que fazem parte da tribo acompanham em silêncio o seu chefe, repartem consigo todas as experiências do momento, entreajudam-se nos momentos mais difíceis da caminhada, dão as mãos para ultrapassar as fragas mais inóspitas ou os mais escuros recantos das almas que os acompanham. No fim resta a unidade do silêncio. Os olhares que se cruzam para dizerem tudo sem que um só som seja escutado. E o chão fresco e verde a servir de colchão a Serafim, que se sente transparente e gelado como se tivesse voltado a ser um pequeno embrião humano colocado num acolhedor útero branco de neve pura e imaculada, tão forte e cristalina como só a imensa e gigantesca Sagarmatha, deusa mãe da terra, poderia proporcionar.

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