16 - SAGARMATHA


- Ajuda a passar o tempo mais depressa se não estiver sempre a pensar nas coisas! A montanha vai continuar a crescer! Já crescia antes de termos nascido. Já crescia antes dos homens terem existido. A montanha é a senhora dona do Mundo, branca, poderosa e letal. Vai sendo empurrada para cima pelas forças escondidas no fundo da Terra, até ao dia em que nem o sol se atreverá a fazer-lhe frente. As suas escarpas geladas e inóspitas vão continuar a atrair aventureiros de todas as cores. Depois, a montanha dona do Mundo entretém-se a engoli-los. O sentimento de vitória atingido pelo homem que lhe consegue fazer frente é indescritível.

Serafim guardou nele a vontade de vencer a senhora de branco. Não arranjou tempo nem coragem necessária para concretizar o desejo.

Teresa fugiu do seu alcance, sem rumo nem aviso. Largou-lhe as mãos e desapareceu impelida por um súbito desígnio. Serafim só conseguiu manter de si o calor da mão que segurava no anterior milissegundo.

As imagens da gigantesca estátua branca, colossal, que manda neste Mundo como nenhuma outra, avançam sobre si. O escuro azul que os vestia desapareceu. Servem-se as tonalidades luminosas de brancos intensos, de cinzentos gélidos, aqui e além salpicados por todas as cores do arco-íris, que se quebram da intensa luz branca reflectida bem forte pelo meio dos picos gelados das encostas. Serafim antecipa o perigo. Está a cair vertiginosamente perto das escarpas fatais da dama branca. Sente-lhe tão de perto a majestade sem controlo na queda que lhe vai parecendo cada vez mais mortal.

Mentiu quando disse a todos não ter coragem para realizar o sonho da sua vida. As prioridades foram sendo alteradas. As muitas responsabilidades perante tantos e tão variados assuntos, pessoas, os pequenos e médios interesses que subjugaram e alteraram os pesos das propostas da sua vontade, foram dando conta daquele segredo bem guardado. Ia repetindo a si próprio, tantas e tantas vezes as palavras do engano. Esperava que o peso da repetição o fizesse acreditar nas palavras.

As alvas montanhas passaram aceleradas na sua frente. A solidão e intensidade do momento transformavam Serafim.

Sentiu a insignificância da sua existência, a importância de estar a sentir essa pequena dimensão relativa das coisas.

Sentiu a extrema importância do que estava a sentir. As mãos ficaram transparentes. Podia observar a arquitectura do seu interior, ver o sangue correr em si, a passear como um rio vermelho nas suas veias e artérias.

Sentiu uma névoa a vestir-lhe o corpo como uma cápsula protectora. Considerou-a estranhamente agradável em temperatura perante tão inóspita e gélida companhia.

Sentiu os olhos a ficarem cada vez mais pesados e tranquilos. O corpo que ganhara velocidade estonteante nos momentos finais da queda, flutua agora num aparente vácuo protector, tépido, aquático, luminoso, secreto e seguro.

Sentiu um imenso e indescritível prazer dado pelo suave silêncio deste lugar.

Sentiu-se novamente capaz de entender e perceber o significado da palavra descanso. O mais sublime de todos os descansos foi assim servido a Serafim na base irregular de Sagarmatha, a deusa mãe da Terra, onde uma gigantesca bola de neve aterrou vinda do céu como avalanche do destino.

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