18 - REFÚGIO


A mente descarrega as lembranças à medida que o corpo se vai desligando. As marcas singulares da vida de Serafim desfilam em forma de memórias douradas. A velocidade com que contam as suas histórias é idêntica à sentida no momento em que aconteceram.

Organizam-se as forças para dar novo alento ao ritmo da embarcação. Teresa e Maria vão tirando partido da paisagem indescritível que embeleza as margens do rio. Muitas são as espécies de aves que o cruzam, esvoaçando por cima do imenso leito que se espreguiça cada vez mais à medida que avançam nas costas do seu abrigo. Descem sem direcção estudada, com o cuidado de irem acompanhando a corrente que lhes vai dando a necessária informação ao seu remar.

- Avó, ficámos tão admirados com o vosso desaparecimento da festa. A mamã nem quis acreditar quando a tia Joana lhe deu a notícia. Ficou quase da cor do vestido e sentiu-se tão mal que se sentou na cama para não cair no chão com a novidade. O Luís é que me disse para eu vir à procura dos avós! O problema é que não sabemos bem onde estamos, não sabemos onde está o avô, e o que devemos fazer para regressar a casa, não é avó?

Teresa olhava para Maria como quem olha para um anjo verdadeiro. A sua bonita neta tinha-se transformado num pequeno anjo e veio resgatá-la no momento em que a eterna descida no vazio infinito se perpetuava até à exaustão. Não conseguia encontrar forma para travar aquela queda, dar solução ao vôo. Recorda-se de ter ouvido uma voz familiar que não conseguiu identificar com precisão, muito parecida com a de Maria mas não exactamente a da neta. Era mais grave e muito menos cristalina. Contudo, foi na tentativa de se chegar mais perto do local de onde a escutou que a sua mão deixou de sentir a mão de Serafim. Ainda tentou voltar atrás, mas a rapidez com que o corpo de Serafim seguiu outro rumo, outra vontade, aconteceu com tal brusquidão que não mais o conseguiu alcançar.

- Meu amor, tudo isto que nos está a acontecer é de tal forma estranho que temos aceitar a força destes acontecimentos. Devemos agradecer o facto de estarmos vivas, estarmos aqui as duas a beber a beleza desta paisagem. Temos de procurar saber onde estamos. Temos de arranjar forças para encontrar quem nos auxilie a voltar para casa, sair daqui e encontrar quem nos possa vir socorrer.

Serafim conseguiu ouvir as vozes da mulher e da neta não muito distantes. Estavam perto o suficiente para as conseguir distinguir com clareza suficiente para ganhar ânimo e vigor. A dormência que experimentava no rosto e que se espalhava como um torpor por todo o lado direito do corpo, afectando-lhe o braço e a perna, davam-lhe sinais de que o coração, finalmente, decidira cumprir as ameaças do passado recente. Sentia-se confuso como nunca antes se tinha sentido. Uma sensação de estranheza que lhe afectava a capacidade em racciocinar, invade-lhe a mente. A visão ficou alterada e visões estranhas eram projectadas na sua retina sem que a luz no seu exterior tocasse um só objecto do que nelas se ia reflectindo. As pernas ficaram descontroladas, perderam forças, sentiu vertigens e o corpo começava a cambalear, descontrolado. A cabeça latejava de dor, uma dor forte e repentina que acabou por o derrubar violentamente para o chão. Foi aí, na verde relva do seu jardim, que encontrou o refúgio onde ainda se encontra.

Luta contra o tempo, que vai escasseando, e que conseguiu miraculosamente descobrir dentro de si. Espreme-o com uma gana imensa, sabendo que só o seu sangue de guerreiro lhe fornecerá a remota esperança em poder fazer-se sair do branco abrigo iluminado onde se esconde. Só assim poderá ainda aspirar a conseguir entrar para o pequeno bote que transporta Teresa e Maria nas tranquilas águas do rio Amazonas.

.

Comentários