14 - AZUL


Teriam passado tantos anos assim? Os dias desapareceram uns atrás de tantos outros, como loucos, desorientados de vontade. Serafim desligava a memória das tardes, do desnorte criado pela rotina da maré dos tempos.

A vida tomara conta de si, acorrentara-lhe a razão.

A longa e lenta descida a dois, com o cheiro da terra a ouvir-se cada vez mais dentro do seu sentir, serve-lhe as recordações dos calmos e livres dias da infância, os únicos em que se sentira verdadeiramente livre.

A liberdade namora os nossos primeiros anos de vida com sofreguidão.

Ficara-lhe gravada para sempre nas memórias, como a dôr da separação se prende a quem sofre o desgosto da primeira paixão perdida. Chamava-se Amélia o primeiro amor de Serafim. Gostara dela com tanta intensidade. Chegou a escrever-lhe cartas com lágrimas de improviso. Era mais velha do que ele quase dez anos. Pediu-lhe consentimento para se tornar seu marido com a ternura dos sete anos, tinha Amélia quase dezoito.

Foi com desalento que aceitou a derrota. O coração ficou desfeito. A intensidade do azul com que a alma de Amélia se perpetuava nas paisagens de Serafim era muito doloroso. Tudo tinha a cor dos olhos da sua amada. Não sabia que a coragem por si demonstrada tinha sido do tamanho de um gigantesco castelo de contos de fada. Ao ter realizado aquele pedido, cresceu, ficou do tamanho do dono do castelo encantado. Surgiu-lhe uma estranha vontade em guardar Amélia como o gigante guardara a harpa mágica em gaiola dourada. Prendê-la e guardá-la só para si numa caixa onde a pudesse ir beijar quando quissesse.

Ficou sem perceber porque lhe surgira Amélia em pensamento. O motivo surgiu pelo facto de se ter transformado aquele intenso negro num azul de um escuro muito carregado, mas que permitia a luminosidade suficiente para que conseguisse ver Teresa. Descobria novamente a dimensão dos seus segredos, do tamanho do seu corpo. A escuridão da descida atenuava-se com aquele escuro azul por onde descem.

- Serafim! Já te consigo ver novamente! Onde será que vai dar esta descida? Olho lá bem para o fundo e não consigo vislumbrar nada parecido com terra firme, com chão, com qualquer coisa sólida que nos dê guarida.

Teresa olhou na direcção do marido e percebeu, na sua expressão, uma juvenil lembrança que o seu sorriso lhe permitira desembrulhar.

- Estás feliz? Consigo perceber felicidade no teu olhar. Esta experiência está a dar-nos volta à cabeça.

As mãos continuavam coladas na descida. Os seus corpos pareciam pairar como dois albatrozes, um ao lado do outro de asas bem abertas e unidas no centro. Deixam que o vento lhes dê a orientação necessária ao seu voar. Os receios passaram a fazer parte do passado recente. O princípio deste azul olhava-se com a vontade em descobrir nele as respostas para tantas dúvidas.

- Já viste como não se sente o nosso peso. Sinto-me leve como nunca me lembro de ter sentido. É como se todo o peso do corpo tivesse desaparecido de um segundo para o outro.

O escuro azul começava a abrandar a sua intensidade. Uma estranha alvorada tomava agora conta do passeio. As misturas perfumadas misturavam-se com maior intensidade e o peso começava a fazer-se sentir novamente nos seus corpos voadores. Ganham velocidade na descida.

- Tenho medo Serafim! Um medo tão grande! Não quero vir a desaparecer para sempre. As nossas filhas precisam tanto de nós. A nossa neta precisa tanto de nós! Eu preciso tanto de ti, Serafim!

O azul daquela alvorada tomava conta dos dois albatrozes acelerados. Tomava conta deles com a certeza de todas as dúvidas. Com a certeza azulada de todos os nascimentos e de todas as mortes do Universo. Tomava conta deles como se fossem pequenos recém-nascidos dados à luz naquele instante, a quem a intensidade brutal da luz daquele dia lhes servira uma imensa vontade de gritar.

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