19 - SOSSEGO


Descia a memória até às profundezas mais escondidas que carrega em si. Uma ténue luz reinvindica vontades, esconde poesia nas imagens herdadas pelas histórias que já escreveu. Uma a uma semeam a esperança na continuidade deste universo que vai tombando, abalado pela imprevista solidão do ataque que arranca a vida do seu peito. E toda a vida num instante, toda a dor e incerteza, toda a musicalidade de todos os hinos que se atrevem a frequentar os seus segredos, todas as loucuras, todas as mortes dos que por ele foram fazendo história, construindo verdades, deixando e semeando as dores e os doces sabores experimentados, devorados ardentemente com a força da paixão, das cóleras, das fobias, das amarras dos seus receios. Foram domados na dimensão acrescida do passar dos anos, pelas experiências acrescentadas em esclarecidos fermentos de carácter. Na confusão de sentimentos, de trágicas e aceleradas lembranças, aguarda pacientemente a oficialização da sua situação. Notou dificuldade imensa em respirar e em atenuar as fortes dores que lhe paralisavam o corpo. Aparecem as dúvidas, essas safadas, novamente a atormentarem-lhe o juízo. Acrescentam mais dor, arquitectam planos maquiavélicos que não dão descanso às vontades de Serafim, não fornecem acalmia a tamanha provação.

Lutar. Elaborar estratégias para tentar ultrapassar aquele momento, alcançar sem oxigénio o topo de Sagarmatha, decifrar o enigma que lhe permitirá abrir as portas para o resto da sua vida.

O entardecer altera as paletas com que pinta o leito do caudaloso rio. Maria não entende como apareceu por ali. A segurança que a avó lhe proporciona não lhe trás serenidade nem lhe limpa as dúvidas. A pequena barcaça vai descendo o rio Amazonas. Teresa sente as incertezas de Maria, sente as suas a aumentarem-lhe os receios e o pavor, mas nem se atreve a disso dar sentido.

- Avó, querida avó. Aqui tudo é tão bonito, tão verde! Não se sente o peso da poluição e até o ar que respiramos parece doce e perfumado. Estavam todos tão assustados no casamento da mamã. O Luís Miguel fartou-se de me chatear! Estava mais assustado do que ninguém. Foi ele que acabou por me dar coragem para vir ter contigo e com o avô. Lembrei-me logo das palavras mágicas do teu poema. Não sabia que possuiam esta força imensa, tão forte como o medo que senti quando me vi sózinha dentro deste barco no meio do rio. E foi então que tu me vieste ajudar avó, para que eu não ficasse aqui perdida no meu deste enorme rio, desta selva gigantesca, não foi avó, não foi?

Teresa ia afagando os bonitos cabelos de Maria, observando a paisagem amazónica naquele entardecer. Não encontra respostas à altura das dúvidas da neta, ou até uma qualquer outra que possa apaziguar toda a sensação de estranheza e perturbação que sente desde que resolveu acompanhar o marido Serafim no seu segundo vôo em direcção a esta espécie de mundo paralelo.

Um colossal sossego.

Subitamente, ali, no meio do imenso Amazonas, rodeada de natureza pintada com os sons de todas as espécies animais que lhes abriram as portas de casa, na companhia da sua menina coração-de-sonho, um sossego completo e absoluto tomou conta da sua alma, de toda a sua existência.

Sensação assim nunca tinha sentido em toda a sua vida! E porque nenhuma das palavras existentes em todas as línguas do planeta seria capaz sequer de traduzir uma milionéssima parte desta sensação, Teresa percebeu imediatamente que era importante comunicar a Maria tudo o que estava a sentir. Abraçou-a colocando o braço à volta da neta, a mão por sobre o coração da menina, que lhe transmitiu alegremente o ritmo acelerado daquele corpo de menina corajosa. Colou o seu corpo ao corpo da neta, com o peito bem junto às costas de Maria, para que também ela pudesse escutar o bater acelerado do seu coração.

Fechou depois os olhos.

Mantiveram-se assim, neta e avó, bem juntinhas, corações sincronizados, a absorver e comunicar toda a intensidade daquele secreto momento de sossego.

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