22 - VERDE


No espaço silencioso da boda, Joana sentiu necessidade de apoiar Valquíria. Nestes momentos difíceis, tudo o que é acessório deixa de fazer qualquer sentido. A irmã estava verdadeiramente desolada. Uma desolação temperada com desespero e angústia. O medo e pavor que lhe saiam pelos olhos toldavam de um cinzento baço e quebradiço o brilhante dia do seu casamento. Valquíria soluçava agarrando o rosto com as mãos. Tinham-se fechado as duas no quarto. Já não conseguiam suportar os barulhos e as pessoas que as observavam de maneira tão misericordiosa. Sentiam-se despidas pela forma tão transparente com que demonstravam a dimensão da sua dor. Era ainda mais doloroso para Joana vê-la assim nestes preparos. O que mais invejava e admirava na sua irmã mais nova era a extrema facilidade com que contaminava de felicidade todos aqueles que lidavam com ela. Transbordava do seu olhar, do seu rosto, sempre iluminado por um imenso sorriso, aos gomos, com tanta naturalidade que não era possível, mesmo ao mais sisudos de carácter, qualquer acto de resistência. A todos conseguia arrancar sentidos sentimentos de alegria e bem-estar.

- O que mais nos custa no meio de tanta estranheza, é a total incapacidade em lhe conseguirmos dar explicação. Como é que todos estes estranhíssimos acontecimentos podem estar realmente a acontecer? Como é possível tamanha transfiguração da realidade? O mundo tal como o tínhamos até agora percebido, desatou a pregar partidas a todos sem pinga de vergonha.

Valquíria ia ouvindo as palavras de Joana e apenas conseguia pensar em Maria. A dor que tinha tomado conta do seu coração, ao perceber que tanto o pai Serafim como a mãe Teresa tinham desaparecido de maneira tão pouco ortodoxa do seu casamento, deixou de fazer sentido quando também Maria desapareceu dali sem deixar rasto. A incapacidade demonstrada por todos os que a tentaram e ainda tentam encontrar já não é raiva, nem dor, nem vazio. Passou a tomar conta de si com tanta intensidade que só a imagem da filha lhe aparece em intensas memórias para aliviar o tormento. Para qualquer dos lugares para onde olhe, ao tapar o rosto com as mãos, ao dar descanso à visão, nenhuma outra imagem lhe surge a não ser a da filha Maria, sempre sorrindo, sempre feliz, sempre distante e ausente.

Joana continuava junto da irmã. A mão direita por sobre o ombro da noiva, servindo-lhe companhia, alimentando-se da familiaridade daquele tormento sentido a duas.

- Eles estão bem! Tenho certeza que tudo está a correr bem com eles. Sinto que a minha pequena Maria sabe exactamente aquilo que tem de fazer.

Serafim começava a sentir um pequeno formigueiro nas pernas, na parte interior da coxa, a descer até aos tornozelos, passando de maneira mais acelerada até aos pés. Todos os membros eram agora novamente dele.

- Então Serafim! Que tal? Já se sente inteiro como dantes? É bem estranha essa sensação de se sentir apenas como um pequeno arbusto guerreiro. Todas as forças da criação a fazerem-lhe cócegas na vontade e as raízes da sua prisão bem agarradas ao solo do qual jamais poderá ser arrancado, a não ser que a vida deixe em si de fazer qualquer sentido. Uma árvore morre de pé! Tudo o que observa é do local onde semearam a sua existência. E a vontade que nos dá de viajar é igual à de todos os restantes seres que vamos observando e sentindo ao nosso redor. Construiram Serafim com homem, mais sorte que essa, enquanto distinto membro dos bastidores deste palco da existência, não teria sido possível. Veja o meu exemplo caríssimo amigo. Aqui estou eu, nesta curva importantíssima da sua viagem, apenas como elo de ligação entre aquilo que poderá deixar de ser o Serafim com quem neste momento alimento esta conversa. Daqui nunca saí. Tornei-me grande consigo, nunca deixou de pensar em mim em diferentes alturas da sua existência, e fazia-o sem que tomasse verdadeira consciência do significado desse seu pensamento. Digo-lhe agora que o fazia porque na sua infância a imagem que conseguiu guardar deste seu amigo foi de tal forma importante, que se agarrava a essa lembrança como quem segura a forte corda que nos liga às verdades deste Mundo. Tal e qual como essa que transporta consigo desde que aqui chegou meu caro amigo Serafim, e que inexplicavelmente mantém bem apertada na sua mão esquerda.

Verde, só verde.

As distantes paletas de cores do entardecer junto à margem do rio Amazonas deixaram-se subjugar por estes tons de verde carregado que vão agora acompanhando o passeio de Maria e de Teresa até o que julgam ser a morada daqueles meninos índios que as vieram receber.

- Avó, está tudo tão calmo. Já não deve faltar muito para a aldeia dos meninos. O primo Luís já me tinha trazido até à beira deste caminho mais estreito. Foi quando o encontrei escondido na garagem do avô a mexer no carro do papá. Se não fosse eu, a Nana e a Marafona, ainda hoje estaria por aqui sozinho e perdido sem poder regressar a casa. Tinha ficado sem gasolina no carro, aquele tontinho!

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