67 - RITUAL


Será possível a existência desta dimensão? Todos os pesadelos sonhados pelas várias gerações de habitantes da quinta criação da humanidade juntaram-se aqui nesta derradeira etapa de Mictlan. A visão que se tem do alto do templo é insuportável. Autênticas cascatas de cadáveres continuam a dar alimento às escadarias que vestem cada um dos lados da pirâmide. Os corpos são constantemente lançados, sem piedade, alguns já decapitados, outros com falta de membros, da praça superior do grande templo. Dir-se-ia que o interior da construção está prenha de cadáveres.

A vencedora da batalha com Tezcatlipoca terá de se apresentar diante os senhores de Mictlan. O seu troféu tem de ser aqui resgatado e erguido no topo desta pirâmide como se de um coração sagrado e ainda quente se tratasse.

É aqui que o mais profundo desejo de Teresa tem de ser comunicado.

É aqui que, na presença dos senhores do reino dos mortos, se apresenta como caminhante vitoriosa das nove dimensões dos seus domínios.

É aqui que, aos pés de Mictlantehcutli, coloca a corda que Serafim abandonou algures nas profundezas geladas da quinta dimensão de Mictlan. Maria trouxe-a consigo da boda, segura que estava à guarda do seu fiel general. Depositou-a nas mãos da avó no último degrau da subida. Sabe, pois assim lhe foi comunicado por Quetzalcoatl, que não pode permanecer nem mais um instante nestes domínios. A avó será apresentada pela grande serpente emplumada aos representantes máximos deste reino, enquanto chefe índio Yatughuman.

Sem esboçar um mínimo pensamento que fosse, a bela e jovem Izpapalotl levantou voo do alto da miserável construção em direcção a terras mais a sul. As suas viagens entre mundos, entre o que é real e fantasia, sempre fizeram parte da sua essência de coração-de-sonho. O primo soube manter o segredo desta habilidade da prima primorosamente resguardado dos olhos atentos e curiosos da tia Valquíria. Já quanto ao tio Sebastião, parecia-lhe que o noivo se movia mais como um bravo e valente soldado aliado à causa do que como um forasteiro inquisidor.

- Tio Sebastião, sabe porque é que a Maria anda sempre a esconder-se de nós? Sabe porque é que ela adora o jogo das escondidas acima de qualquer outro jogo ou diversão? A minha missão é a de ficar aqui, mais uma vez, à espera que ela volte! Desta vez deixou-me as bonecas ao colo e levou uma corda muito velha e pesada que me tinha dado para guardar.

Sebastião tinha chegado junto à escadaria que dava acesso à Prainha e onde o menino se sentara a olhar o mar. Percebeu que uma pequena lágrima, logo seguida de uma outra e outra ainda lhe iam refrescando as belas sardas das rosadas faces.

- Olha, olha! Não me digas que um valente general como tu vai agora começar a baixar a guarda do seu castelo. O mais bravo dos guerreiros não se pode deixar ir assim abaixo com coisas destas. Sabes que as meninas, por vezes, são muito complicadas e difíceis de entender. Gostam de criar uma certa magia e uma aura de mistério à sua volta. É uma maneira bem inteligente que usam para se fazerem notar e nós, os senhores, andamos sempre enfeitiçados com os seus estranhos poderes. Mas vais ver que é tudo só a fingir!

A noiva vinha caminhando ao longe na direcção dos bravos guerreiros. Ouviu o barulho e a agitação da correria mal saíra de casa onde tinha ido falar com a irmã Joana. A polícia não tinha o mais pequeno indício do que possa ter acontecido.

- O vestido da tia Valquíria é mesmo lindo, não acha tio? Parece uma bela princesa, não, não, nada disso! Parece mesmo uma rainha, isso é que sim! Uma bela e perfeita rainha!

A princesa que Luís mantinha em imagem no seu pensamento vinha a correr descalça ainda mais ao longe do que a tia Valquíria. Vinha disparada como uma flecha, saída do portão da garagem, a correr na direcção da mãe. Em menos de três segundos a pequena Maria alcançou a mãe e abraçou-a de imediato. O impacto daquele carinho quase provocava a queda da bela rainha da boda.

- Credo Maria, olha que ainda caio. Parece que não nos vemos há séculos. E o que é que te deu na cabeça para andares descalça por aqui? Onde é que deixaste os sapatos, meu amor?

A menina olhou para bem fundo dos grandes olhos da mãe. Sentiu que aquele abraço mágico lhe trouxe de volta parte da esperança desaparecida.

- Estás tão bonita mamã, já te tinha dito? És a noiva mais formosa do mundo!

Valquíria ficou desarmada ao ouvir as palavras da filha. Sentiu as pernas a fraquejar mais um pouco e agarrou-se a Maria num abraço bem apertado. Os seus corações acelerados acalmaram-se ao sentirem os peitos bem juntos a sincronizar os batimentos.

- Só mesmo tu e o sabor doce dessas palavras me poderiam suavizar as horas amargas deste dia.

A avó prepara-se para ser apresentada a Mictlantecuhtli e Mictecacihuatl. Os objectos que Yatughuman transportou para serem ofertados aos senhores da morte já se encontram colocados num altar à entrada da grande ala central do edifício. Apenas a corda foi por Teresa colocada junto aos pés dos senhores da morte.

Os ruídos devastadores que se fazem escutar por todo o lado e que tornam insuportável a simples presença neste local, cessam no instante em que Mictlantecuhtli se ergue do seu trono de ossadas. A sua consorte permanece sentada, aparentemente alheia à presença de Teresa e de Yatughuman. Os únicos barulhos que vão avançando pelo ar irrespirável provêm dos esgares e das gargalhadas despropositadas que Mictecacihuatl vai fazendo. Coça-se sistematicamente em todas as partes externas e internas da sua carcaça. Não olha para os recém-chegados. Vai-se entretendo a mastigar um conjunto indecifrável de alimentos que de quando em vez cospe para o ar e para o chão ao seu redor.

- As regras criadas pelos deuses, os deuses fazem demolir, caso o entendam. É de uma sobranceria despropositada esta sua presença perante nós! A vitória obtida nas nove dimensões dos meus domínios não pode ser validada pois foram muitos os auxílios que lhe forneceram amparo. A sua alma foi incapaz de avançar desgarrada por estes caminhos. Os penitentes não alcançam esta dimensão. Ficam para sempre perdidos e esquecidos ao longo das diferentes dimensões do meu império, tal como a alma do seu defunto marido. Gostei, contudo, da derrota que infligiu ao pomposo Tezcatlipoca. Poucas foram as coisas que nestes últimos tempos me proporcionaram tamanha distracção. E o espanto por ele demonstrado quando lhe trespassou o crânio de alto a baixo!? Delicioso, simplesmente delicioso!

Yatughuman aproximou-se de Mictlantecuhtli e segredou-lhe as palavras consagradas para estas raríssimas situações. Sempre que uma alma consegue atravessar as nove dimensões de Mictlan, a grande serpente emplumada apresenta o ser vitorioso ao deus da morte através das antigas linguagens criadas durante a primeira criação da humanidade.

Teresa foi assim anunciada nesse dialecto envelhecido pela pirâmide dos tempos. Foi espectadora privilegiada do estranho ritual que se seguiu.

Os dois deuses cresceram em dimensão, colocaram-se de costas um contra o outro. Quetzalcoatl, transformou-se em grande deus do vento Ehecatl-Quetzalcoatl. Mictlantecuhtli apresenta-se com todos os reais e simbólicos elementos que o destacam em nobreza e realçam em grandeza e autoridade.

Ehecatl é uma das mais poderosas manifestações de Quetzalcoatl. Como magnificente deus dos ventos, tem a capacidade de dar vida a tudo aquilo que é inerte, de soprar a vida e a capacidade de amar pelos quatro pontos cardeais. Ao soprar a sagrada trompeta em forma de concha que carrega ao peito, a mesma que usou para dar vida aos ossos resgatados ao deus dos mortos, a imensa pirâmide agita-se, vibra em diferentes direcções, vítima do terramoto provocado pelo som que sai das suas aberturas.

Apesar da sua aparente loucura antes do início do ritual, Mictecacihuatl desceu às profundezas da grande pirâmide da morte para resgatar o pote com os restos mortais de Serafim. A deusa Cihuacoatl é responsável pela manutenção e armazenamento dos contentores de todos os mortos. Uma pasta branca farinhenta é por si fabricada com os restos das ossadas dos penitentes. Depois, é colocada no interior de um pote de argila, rotulada e arquivada no coração da grande pirâmide em local só por si conhecido.

O pote com os restos mortais de Serafim chega ao local da cerimónia pelas mãos da perturbada rainha senhora de Mictlan.

Cihuacoatl recebeu ordens de Ehecatl para assim proceder. Teresa já não irá assistir ao que agora é da responsabilidade de todos estes deuses.

Ao redor do pote que foi aberto e esvaziado no meio das quatro divindades, reúnem-se Mictlantecuhtli, Ehecatl-Quetzalcoatl, Mictecacihuatl e Cihuacoatl. A corda de Serafim foi colocada por Teresa num círculo perfeito ao redor da mistura preparada pela deusa serpente.

Mal terminou de unir os dois nós das suas extremidades, a avó desapareceu para sempre da tormentosa nona dimensão de Mictlan.

.


Comentários