66 - CASTANHO



Somos mortais

Todos iremos partir

Todos iremos morrer aqui na Terra

Como uma pintura

Todos seremos apagados

Como uma flor

Nos iremos secando

Meditem, senhores águias e jaguares

Nem que sejam de jade

Nem que sejam de ouro

Também para lá partireis

Para o lugar dos descansos

Temos que despertar

Nada haverá de ficar”

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Netzahualcoyotl – rei e poeta asteca de tezcoco ( 1391 – 1472 )

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Nada haverá de ficar, tal como o vento passa e os rios caminham na direcção da foz para se juntarem ao oceano, que imenso se transforma em gelo, em nuvem, em vapor.

São nove os rios de Izmictlan. Esta é uma dimensão gelada onde os ventos cortantes voltam a fazer-se sentir, ferozes e impiedosos. Por lá caminham as nobres viajantes, escondidas nas profundezas das águas velozes do primeiro desses rios escuros por onde avançam. Quetzalcoatl segue na frente, iluminando o percurso. Derrete à sua passagem os grandes e pérfidos crocodilos que tentam atingir Teresa e Maria.

Avançam rio após rio.

Os habitantes do fundo dos seus leitos são todas as espécies de ferozes animais aquáticos que surgem sem aviso prévio das profundezas, atacando as vítimas por baixo, por detrás, pelos lados e pela frente. Alguns deles já não existem actualmente na Terra. São antepassados monstruosos dos gigantes marinhos que povoaram os primeiros oceanos e cujos nomes se perderam na maré dos tempos. São restos da anterior construção da humanidade que Chalchiutlicue se apressou em destruir e que mantém aqui encarcerados nestes nove rios de Izmictlán. Fornecem a derradeira derrota às almas dos raros penitentes que até aqui se conseguem arrastar.

As fortíssimas garras e as sólidas asas de obsidiana das guerreiras terrestres são usadas com alguma regularidade para manterem afastados os monstruosos animais que conseguem passar incólumes por Quetzalcoatl.

As batalhas nas profundezas destes nove rios selvagens duram quase um ano terrestre. Os braços e as garras de Maria já não são da cor do ouro, já não são da cor da sua pele. Os olhos de Teresa olham para a valente Izpapalotl vermelha. O caudaloso rio onde viajam é da mesma cor do primeiro dos rios que passava junto à aldeia índia de Yatughuman, aquele para onde Serafim mergulhou sem hesitar. A cor que veste a heróica anaconda alada é a mesma cor vermelha das guerreiras, das águas do rio, do sangue que brota dos corpos derrotados de milhares de monstros marinhos, do líquido vital que lhes transporta a vida até à mais remota das células dos seus corpos.

O final desta viagem está bem próximo. O último destes nove rios cruéis foi atravessado, tal como os restantes, através de batalhas incontáveis em que se repeliram os atacantes furiosos que tentaram a sua sorte.

Ao atingirem a foz do nono rio, saltam vitoriosas para a margem de onde vislumbram o grandioso delta que se forma ao desaguar num oceano cor de lama. São inúmeras as ilhas que se espalham por aqui. Na maior de todas elas encontra-se a pirâmide dos reis de Mictlan. Adornada com as cores do lodo e da escuridão, a casa de Mictlantecuhtli e de Mictlancihuatl ergue-se mais alta do que o mais alto pico de todas as ilhas da região.

Este é um local tenebroso, povoado pelas cores e pelos odores de sangue seco e putrefacto. São muitas as tonalidades de um denso castanho-escuro que transformam esta última dimensão num lugar verdadeiramente desprezível. O ar é irrespirável. A morte e a devastação estão espalhadas por todos os lugares de Chicunamictlan.

A chegada até à base da grande pirâmide é feita pelo ar, atravessando a atmosfera carregada que por aqui se respira, furando as muitas nuvens de enxofre e de carbono que impedem uma visão correcta dos acontecimentos. O intestino do mundo faz jus à sua fama. Considerando a sua posição a norte, os restantes gases tóxicos acumulam-se com enorme facilidade neste delta sórdido e lamacento.

Os viajantes sobrevoam a paisagem e a seus olhos tudo se apresenta carregado de castanhos muito escuros e difusos. A vegetação é escassa e sombria. Não há qualquer sinal de árvores de pequeno ou médio porte. São imensas as ossadas abandonadas por todos os locais. Algumas completamente partidas, outras ainda com os restos de carne, de pele e de músculos agarrados a si. Milhões de crânios flutuam abandonados nas entranhas acastanhadas destas águas moribundas. Quetzalcoatl transporta Teresa às suas costas. Maria voa ligeira a seu lado dando uso às leves e resistentes asas de obsidiana. Este lugar é exactamente o que dele imaginavam, ampliado cinquenta vezes em dimensão e em horror.

A estrutura arquitectónica onde vivem os senhores de Mictlan esmaga pela imponência das suas dimensões. Ao tentar olhar para o topo desde a base, o pescoço obriga as costas a curvarem-se num ângulo que provoca a queda de Teresa.

Foi em silêncio absoluto que a ligação aérea se realizou. Todas as vidas que já foram e que ali se encontram derramadas e esquecidas provocam às viajantes sentimentos difíceis de colocar em palavras. Apesar de toda a sua coragem, resistência e bravura, Maria não resistiu a muitas destas imagens e às misturas de intensos odores e vomitou todo o conteúdo do seu estômago.

Cada um dos noventa e um degraus das quatro escadarias que sobem desde a base até ao topo da grande pirâmide castanha é descomunal. Apenas com asas ou poderes divinos conseguem as almas dos penitentes que até aqui se arrastaram subir ao alto deste templo.

Ao iniciarem a escalada, vários são os crânios que rolam e que passam velozes tangentes às suas cabeças. Corpos são atirados já decapitados pelas quatro escadarias abaixo, rebentando-se e partindo-se as ossadas num ruído surdo insuportável. Soltam-se as carnes despedaçadas e ensanguentadas ao longo da queda. A base da pirâmide é um amontoado de cadáveres que aumentam em horror o cheiro intenso de tanta morte.

Teresa e Maria não conseguem comunicar qualquer ideia, qualquer sugestão do que lhes passa pela alma, pois qualquer pensamento sobre esta dimensão é perfeitamente inútil.

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